Pular para o conteúdo principal

A questão sobre o Jesus histórico II

Padre Elílio de Faria Matos Júnior

2) Período pós-bultmanniano. A primeira fase da pesquisa sobre o Jesus histórico havia terminado com o reconhecimento da impossibilidade de se ter um acesso fidedigno à verdadeira fisionomia história de Jesus. Por isso, o teólogo protestante Rodolf Bultmann (1884-1976) ensinava que a história, na verdade, não tinha importância para a vida de fé (o que se conhece com o termo "fuga da história"). Bastava crer em Cristo tal como era anunciado no querigma e deixar-se transformar existencialmente por esse anúncio. Nesse sentido Bultmann se mostrava fiel ao fundador do protestantismo, Martinho Lutero, para o qual a fé era a única via de acesso ao conhecimento e à salvação (sola fides), e também deixava ver a sua opção pelo existencialismo, que, acima da verdade enquanto tal, coloca a decisão do sujeito, que no caso se traduzia assim: crê, muda de vida!

Os discípulos de Bultmann, porém, não se acontentaram com a impostação do mestre, pois lhes parecia que uma fé sem fundamento nenhum na história (Bultmann dizia que o que sabemos do Jesus histórico é apenas que nasceu, viveu e morreu crucificado) não podia ser sustentada. Entre estes se destacou Ernst Käsemann (1906-1998), que, juntamente com seus colegas, procurou estabelecer critérios confiáveis que permitissem um real acesso a Jesus de Nazaré.

O critério mais notável é o chamado critério da descontinuidade, que estabelece que tudo o que, nos Evangelhos, revela uma grave descontinuidade com a cultura judaica do tempo de Jesus e com as tendências da Igreja primitiva, certamente pode ser julgado como historicamente confiável, porque não teria sido simplesmente "inventado" pelos evangelistas ou pelas primeiras comunidades. A condenação do divórcio e a rejeição das segundas núpcias por parte de Jesus se encaixam nesse critério, já que os doutores em seu tempo ensinavam, conforme a Lei mosaica, a possibilidade de desfazer o matrimônio, divergindo somente sobre os motivos que tornavam justa a decisão, e de contrair novas núpcias. Um outro critério é o critério da consternação, segundo o qual o que causava desconforto à Igreja primitiva não poderia ter sido criado por ela, mas seria um fato histórico que remonta a Jesus. Um exemplo da aplicação do critério da consternação diz respeito ao batismo de Jesus por João Batista. A Igreja primitiva, que proclamava a sua fé no Cristo como o Santo de Deus, não iria "criar" o episódio de Jesus recebendo um batismo que era destinado aos pecadores que faziam penitência.

Essa postura, mais confiante na possibilidade de atingir verdades históricas certas sobre Jesus, ficou conhecida como new quest ou second quest. Mas ainda teremos de falar de um novo período sobre a pesquisa histórica sobre Jesus, a third quest.


Comentários

  1. Quando iniciei minhas pesquisas acerca da origem do cristianismo eu já tinha uma ideia formada: nada de Bíblia, teologia e história das religiões. Todos os que haviam explorado esse caminho haviam chegado à conclusão alguma. No máximo, sabiam que o que se pensava saber não era verdade. É isso o que a nossa cultura espera de nós, pois não gosta de indiscrições. Como o mundo não havia parado para que o Novo Testamento fosse escrito, o que esse mesmo mundo poderia me contar a respeito dessa curiosidade histórica. Afinal, o que acontecia nos quatro primeiros séculos no mundo greco-romano entre grego, romanos e judeus?

    http://cafehistoria.ning.com/profiles/blogs/paguei-pra-ver

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Para esclarecer o conceito de “Padre da Igreja”

  Quem é Padre da Igreja?  Ratzinger procura responder através de uma reflexão interessante, que procuro expor abaixo:  A condição “paterna” e a audição da Palavra Para Joseph Ratzinger, seguindo a linha de Jean Daniélou e Michel Benoît, a figura do Padre da Igreja não se define por critérios externos ou sociológicos, mas por uma realidade teológica: o ser “pai” na fé da Igreja. Isso implica ser parte constitutiva do momento em que a Palavra revelada foi ouvida, discernida e configurada na vida da Igreja. A revelação cristã, diz Ratzinger, é uma palavra, mas a palavra só é verdadeiramente palavra quando é ouvida — quando encontra um sujeito que a acolhe, interpreta e a faz viver. Assim, não basta que Deus fale; é necessário que o povo de Deus escute. O tempo dos Padres é o tempo dessa escuta inaugural e configuradora. Essa audição não é apenas uma recepção passiva, mas um evento teológico: a Palavra se manifesta na medida em que é acolhida. Por isso, a Igreja primitiva nã...

Sexualidade e personalismo

  O tema “sexualidade e personalismo” se situa no cruzamento entre a ética e a antropologia filosófica, especialmente a partir da filosofia personalista de autores como Karol Wojtyła (São João Paulo II), Emmanuel Mounier e Gabriel Marcel. Eis uma síntese estruturada: ⸻ 1. Fundamentos antropológicos O personalismo entende o ser humano não como um indivíduo isolado, mas como uma pessoa, ou seja, um ser de natureza espiritual e relacional, dotado de interioridade, liberdade e capacidade de doação. A sexualidade, nesse contexto, não é apenas um dado biológico, mas uma dimensão constitutiva da pessoa, que expressa a abertura ao outro e a vocação ao amor e à comunhão. “O corpo, de fato, e só ele, é capaz de tornar visível o que é invisível: o espiritual e o divino.” — Karol Wojtyła, Teologia do Corpo ⸻ 2. O sentido da sexualidade A sexualidade, segundo o personalismo, tem duplo significado: • Unitivo: expressa o amor de comunhão e doação entre as pessoas; • Procriativo: está orde...

A prioridade do Sentido radical

  A Palavra é eterna; é Deus (cf. Jo 1,1). Acreditar em Deus significa reconhecer a prioridade do Sentido. A Palavra, que é Deus, é o Sentido ou a Razão originária. É a Luz verdadeira que ilumina todo homem (cf. Jo 1,9). Há quem acredite que o não-sentido seja prioritário ou que as trevas precedam a luz. O mundo teria vindo do caos ou da combinação de fatores meramente aleatórios. No entanto, quem sustenta a prioridade da desordem ou da pura casualidade, deve tirar a consequência de que a razão humana vem do não-racional, e a consciência, da não-consciência. Assim, o sentido que o homem consegue expressar viria do não-sentido radical. A palavra humana viria da absoluta não-palavra. Mas aqui se mostra uma incongruência: o caos, o não-sentido ou a não-razão inicial só podem ser explicados pela força da palavra e da razão, o que equivale a dizer que o não-sentido só se mostra como tal se é colocado no horizonte mais amplo do sentido, o que nos remete para a anterioridade radical do Se...