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Padre Vaz, grande filósofo brasileiro

Padre Elílio de Faria Matos Júnior

Nascido em Ouro Preto (MG) em 1921, Henrique Cláudio de Lima Vaz ingressou na Companhia de Jesus em 1938. Fez os estudos filosóficos em Nova Friburgo (RJ). Tendo concluído com sucesso o curso de filosofia, foi enviado, em 1945, a Roma para estudar teologia. A ordenação sacerdotal veio aos 15 de julho de 1948, após o que foi completar sua formação religiosa em Gandia, na Espanha. Voltando a Roma, defendeu, em 1953, sua tese de doutorado em filosofia na Pontifícia Universidade Gregoriana com o título Sobre a contemplação e a dialética nos diálogos de Platão. Depois que retornou ao Brasil, aqui permaneceu até a morte. Dono de uma inteligência clarividente e de uma enorme capacidade para o trabalho intelectual, atuou ininterruptamente, por quase 50 anos, no magistério universitário, seja na Faculdade de Filosofia da Companhia de Jesus em Nova Friburgo (1953-1963), Rio de Janeiro (1975-1981) e Belo Horizonte (1982-2001), seja nos cursos de graduação, mestrado e doutorado do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (1964-1986).

A inegável vinculação de Padre Vaz com a metafísica clássica não lhe impediu de mergulhar nas questões da filosofia e da cultura moderna. Sua formação no seio da Companhia de Jesus foi decididamente aristotélico-tomista. O texto adotado para os estudos, a Philosophia scholasticae summa, de V. Remer, S.J., encaminhou-lhe os passos para a frequentação direta “das duas fontes mais ricas do pensamento ocidental”[1], Aristóteles e Tomás de Aquino. Padre Vaz, contudo, já nos tempos de simples estudante de filosofia, aproximou-se, de alguma maneira, das questões modernas, seja pelo interesse por autores dotados de uma aura de modernidade, como Sertillanges, Rousselot, A. Forest, J. Maritain, E. Gilson e J. Maréchal; seja pelo interesse nele despertado pelo seu admirado mestre, o Padre Xavier Roser, S.J., para com a significação filosófica da ciência moderna, problema que sempre foi objeto de suas reflexões. Nos fins dos anos do curso de filosofia, cresceu a sua aproximação para com J. Maréchal, cujos cinco “cadernos” da sua grande obra O ponto de partida da metafísica foram diligentemente estudados, o que resultou em dois trabalhos no fim do curso: o De ratione existentiae Dei probandae in dynamismo intellectuali Pe. Maréchal, e a dissertação para a Licença: A afirmação do ser no limiar da metafísica.

Estudante de teologia em Roma, Padre Vaz entrou em profícuo contato com a nouvelle theologie, que significava um reverdecimento do velho tronco da teologia, a ponto de confessar que “os maiores estímulos intelectuais desses anos de estudos teológicos em Roma vinham da obra do Pe. Henri de Lubac. Foi por seu intermédio que me entreguei com ardor à leitura de Maurice Blondel [...][2]”. A grande questão levantada pelo Pe. Henri de Lubac era o problema do sobrenatural, que tratava dos temas da realização humana, do desiderium naturale videndi Deum e do dom que representava a mensagem cristã. Nesse tempo, Padre Vaz encontrou-se também com o pensamento do Pe. Teilhard de Chardin. No campo especificamente filosófico, os anos de Roma levaram ainda ao estudo denodado dos diálogos de Platão, cujas posições, como lhe ficara claro a partir da reflexão sobre o problema do sobrenatural, marcaram indelevelmente as estruturas mentais do Ocidente. Foi desse interesse por Platão que nasceu sua tese doutoral, da qual já se falou. Foi ainda nos anos estudantis de Roma que se deu o encontro com o existencialismo francês, que o absorveu na leitura dos textos de Sartre, de máxima atualidade na época. Padre Vaz admite que o encontro com Sartre foi, de certo modo, desconcertante para quem se formara dentro dos sólidos muros da ontologia, cuja ordem e finalidade reivindicadas para a realidade contrastava com o absurdo, fruto da iniciativa néantisante do pour-soi. Padre Vaz, contudo, leu Sartre com a atitude crítica de quem dele se aproxima com os olhos tomistas de Maréchal e confessa que “dessa crítica ao existencialismo de tipo sartreano nunca voltei atrás [...]”[3]. Ainda “naqueles anos do após-guerra, em que tudo se questionava, tudo se julgava possível, mas sobre os quais pairava o obscuro pressentimento de um novo ciclo de crises mais profundas e mais decisivas”[4], outra descoberta foi de capital importância para o jovem Henrique Cláudio de Lima Vaz. Trata-se da obra de E. Mounier e do personalismo que ele representava. Foi à luz do personalismo, desconhecido no seu período de formação escolástica, que Padre Vaz passou a encarar os problemas do mundo moderno em seus aspectos políticos e sociais, e foi através do personalismo que se deu o seu primeiro contato como marxismo. Doravante, a sua leitura crítica de Marx estaria marcada pelo crivo do personalismo.

De volta ao Brasil em 1953, Padre Vaz, sem deixar o ensino universitário, dedicou-se, nos primeiros anos, aos diálogos de Platão. Em 1954, publicou na revista Verbum uma célebre conferência, feita em 1953, sob o título Itinerário da ontologia clássica, que, segundo seu próprio testemunho, “pode ser interpretada como a reconstituição do meu próprio itinerário pelos caminhos do pensamento clássico, de Platão a Santo Tomás [...]”[5]. Nesse texto, Padre Vaz eleva-se às alturas da metafísica tomásica do esse, interpretada qual “suprassunção” das conquistas de Platão e Aristóteles. Na verdade, a metafísica tomásica do esse será um dos pilares do pensamento vaziano.

Em seguida, a partir de 1955, quando o pensamento neoescolástico já estava em franco declínio, Padre Vaz passou a interessar-se com mais afinco pela filosofia moderna, e a ela se dedicou com empenho invejável, passando por Descartes, Espinosa e Kant, até chegar a Hegel. Nenhum dos grandes problemas levantados pelos modernos pareceu-lhe indiferente. Mas essa dedicação de Padre Vaz ao pensamento moderno não o levou a “desconstruir” o que recebera dos estudos da filosofia clássica, como se pode constatar pela leitura de seus textos. Ao contrário, a frequentação dos modernos, sobretudo o seu diuturno diálogo com Hegel, ajudou-o a levar adiante a empresa de uma fidelidade crítica e criativa às grandes intuições dos clássicos, sobretudo de Tomás de Aquino, que permanecerá incontestavelmente seu autor preferido.

O teor de vida de Padre Vaz sempre se caracterizou por ser discreto e retirado, com exceção dos “primeiros anos da década de 60, quando se tornou, quase à sua revelia, o mentor da Juventude Universitária Católica (JUC) e, posteriormente, da Ação popular, na sua primeira fase”[6]. Esses anos constituíam um período de efervescência política e polarização ideológica. Padre Vaz, contrapondo-se a uma visão fechada ao mundo moderno, proporcionou, com seus artigos sobre o Cristianismo e a consciência histórica, uma lufada de ar renovado a uma geração de cristãos que se sentia asfixiada por uma tradição alheia aos desafios políticos, sociais e culturais do seu tempo. As suas posições de então refletiam um certo otimismo para com a modernidade, que mais tarde seria criticado por ele mesmo. Nesses tempos, o confronto com Marx foi inevitável – e se deu à luz do império da filosofia de Hegel, do qual o pensamento de Marx era considerado por Padre Vaz uma província -, já que o marxismo, qual canto de sereia, exercia uma sedução tentadora sobre muitas inteligências jovens, propondo soluções revolucionárias, rápidas e radicais[7]. Padre Vaz, na ocasião, soube ressaltar a originalidade da consciência, negada por tendências marxistas que defendiam a “consciência-reflexo”, e afirmar a abertura constitutiva do homem à transcendência, sem se colocar no lugar dos fáceis anátemas de uma posição conservadora. Tinha, na verdade, uma atitude intelectual firme, mas sensível e aberta ao diálogo com a cultura contemporânea. A saída de Padre Vaz de Nova Friburgo em 1964, após o que se dirigiu para Belo Horizonte e ingressou-se na Universidade Federal de Minas Gerais, esteve relacionada com o contato que mantinha com os dois movimentos supracitados.

Em 1970, quando se celebrava o segundo centenário do nascimento de Hegel, Padre Vaz houve por bem reencontrar-se com Hegel e, com um grupo de alunos e professores, entregou-se a um estudo sistemático dos principais escritos hegelianos. “O encontro, ou reencontro, com Hegel em 1970 fez-me perceber uma profunda afinidade das minhas preocupações filosóficas com alguns aspectos do pensamento de Hegel”[8]. Com efeito, esse encontro mais profundo com Hegel representou para Padre Vaz uma dilatação de seus horizontes filosóficos, sobretudo por uma melhor inteligência do método dialético e pela releitura da metafísica clássica levada a cabo dentro dos quadros da Ciência da Lógica. O método dialético aparecerá imponente nas duas grandes obras sistemáticas de Padre Vaz, a Antropologia filosófica (2 vols.) e os Escritos de filosofia IV e V, que compõe uma introdução ao estudo da ética. O seu último livro publicado, os Escritos de filosofia VII, trará uma leitura da metafísica tomásica do esse em chave dialética, que, partindo da intuição protológica do ser como ato, que se opõe somente ao nada, procura explicitar dialeticamente as suas implicações.

Os escritos mais recentes de Padre Vaz mostram uma consciência aguda da crise da civilização ocidental, civilização em vias de tornar-se a primeira civilização planetária, que, dotada de uma capacidade enorme de produção material, ressente-se da falta de sentido e de valores que a orientem. Principalmente nos textos recolhidos em Escritos de filosofia III (publicados em 1997) e Escritos de filosofia VII (último livro que Padre Vaz fez publicar, em 2001, ano anterior à sua morte), Padre Vaz mostra-se um grande crítico dos rumos que a modernidade vem assumindo em virtude da rejeição da transcendência e da atribuição ao sujeito finito da matriz de toda inteligibilidade. A crise de sentido e a crise ética são o resultado mais patente das opções culturais que têm marcado nossa civilização. As diversas formas de niilismo decorrem da negação do ser, da verdade e do bem. É justamente nesses dois livros que acabamos de evocar que Padre Vaz reivindica uma “volta à metafísica”, e é aí que sua admiração pelas grandes intuições de Tomás de Aquino, relido ou “rememorado” à luz dos desafios atuais, torna-se sobremaneira manifesta.

[1] VAZ, Henrique C. de Lima. Bio-bibliografia. In: PALÁCIO, Carlos (org.).Cristianismo e história. São Paulo: Loyola, 1982, p. 416. [2] Ibid, p. 419. [3] Ibid. [4] Ibid. [5] VAZ, Henrique C. de Lima. Bio-bibliografia. In: PALÁCIO, Carlos (org.).Cristianismo e história, p. 421. [6] MONDONI, Danilo. P. Henrique Cláudio de Lima Vaz, SJ. Síntese, vol. 29, n. 94, 2002, p. 149. [7] Cf. Ibid, p. 150. [8] NOBRE, Marcos; REGO, José Márcio. Conversas com filósofos brasileiros. São Paulo: Editora 34, 2000, p. 30.

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