Pular para o conteúdo principal

Padre Vaz e a "rememoração" da metafísica tomásica

Padre Elílio de Faria Matos Júnior

Um dos grandes temas presentes na obra do Padre Vaz é, indiscutivelmente, a metafísica. Ao lado de temas de primeira grandeza que figuram em seus escritos, tais como a história, a cultura, a ética e a antropologia, aparece a metafísica, e a ela Padre Vaz sempre se refere como uma questão decisiva para o pensar filosófico, de modo a deixar claro que seu pensamento constitui-se a partir de uma decidida opção pela metafísica.[1]

Sabemos que não é fácil dar uma definição de metafísica, uma vez que o termo assume diversos significados segundo os diversos autores e épocas diversas. No entanto, podemos ver que, para o Padre Vaz, existe uma unidade fundamental na compreensão da metafísica a partir da visão do itinerário por ela percorrido, desde suas origens na Grécia antiga, em via ascendente, até o alto cimo que atingiu com o pensamento de Santo Tomás de Aquino e sua metafísica do esse (metafísica do ato de existir). Depois de ter atingido o seu ponto mais alto, contudo, a metafísica começa a percorrer um caminho inverso, a via descendente, com Duns Scot e sua impugnação da distinção real entre essência e existência no ser finito, com Kant e sua negação da possibilidade da metafísica como ciência, até atingir o pensamento pós-hegeliano, que proclama a idade pós-metafísica da razão e mesmo o fim da filosofia.

Ao percorrermos, pois, esse itinerário, tendo como ponto de referência fundamental a metafísica do esse, vértice a que chegou a inteligência humana em sua busca e inquisição, poderemos captar o sentido profundo da opção de Padre Vaz pela metafísica e o tipo de metafísica cultivada por ele. Podemos mesmo dizer que a metafísica do esse pulsa, de algum modo, em toda sua obra, e sem sua compreensão não podemos atingir a inteligibilidade profunda do pensamento vaziano.

Padre Vaz, com efeito, refere-se à metafísica do esse de Tomás de Aquino em tons elogiosos. A descoberta da inteligibilidade irradiante do ato de existir seria “muito mais importante do que qualquer ‘revolução copernicana’”.[2] Esse passo – a descoberta da inteligibilidade do ato de existir – teria levado a inteligência ao núcleo mais profundo e à fonte primeira de inteligibilidade do real e seria “o último e o mais audaz passo da inteligência metafísica (noûs) na sua inquisição do ser”.[3]

Desse modo, reconhece-se a importância do pensamento de Tomás de Aquino e sua metafísica do esse para o pensamento do filósofo brasileiro Henrique Cláudio de Lima Vaz. Paulo Meneses chega a usar o termo connaturalitas (conaturalidade) para caracterizar a relação entre Padre Vaz e Santo Tomás,[4] e esclarece:

Num périplo impressionante, Vaz percorre os grandes pensadores da história da filosofia (e compraz em demorar-se [verweilen] em cada um deles, parecendo tratá-los de igual para igual), Platão e Aristóteles, Plotino e Agostinho, e finalmente Hegel [...] Mas não creio que Vaz (excetuando Santo Agostinho) desse a algum deles o nome de Mestre. Eram pensadores geniais, sobre cujo sistema refletia e, em sintonia ou contraponto com eles, elaborava seu próprio pensamento. Mestre mesmo de Vaz era Tomás de Aquino.[5]

Com efeito, Padre Vaz freqüentou as obras dos grandes nomes da filosofia e conheceu com profundidade ímpar a filosofia de um Platão ou Aristóteles, de um Agostinho ou Plotino, e é conhecida também a dedicação que dispensou ao estudo de Hegel. Entretanto, somos levados a concordar com o juízo de Paulo Meneses de que Tomás de Aquino ocupou em suas reflexões e na elaboração de seu pensamento um lugar especial. Santo Tomás e sua metafísica do esse, metafísica essa que, como dissemos, pulsa em toda a sua obra.

Já em seu ilustre artigo Itinerário da ontologia clássica,[6] aparece com clareza a importância da metafísica tomásica do ato de existir como superação dialética do momento “objetivo” de Platão e do momento “reflexivo” de Aristóteles. Também em sua Antropologia filosófica e em sua Introdução à ética filosófica, as duas obras sistemáticas do Padre Vaz, a metafísica do esse constitui o fundamento de suas profundas reflexões sobre o espírito humano, que, em sua abertura dinâmica ao absoluto do ser e do bem como inteligência e vontade, está orientado para a posição do Ipsum Esse Subsistens como o donde e o aonde do dinamismo mesmo do espírito. Mas a importância da metafísica do esse em sua obra esclareceu-se sobretudo com a potente luz de seu artigo Tomás de Aquino: pensar a metafísica na aurora de um novo século[7] e de seu último livro Escritos de filosofia VII – Raízes da modernidade.[8]

Cumpre observar que o Tomás de Aquino que Padre Vaz traz para dentro de sua obra não é, de modo algum, o Tomás mumificado dos manuais. No capítulo II do livro Escritos de filosofia IProblemas de fronteira figura o artigo Tomás de Aquino e o nosso tempo: o problema do fim do homem, artigo que tinha sido publicado originariamente na Revista Portuguesa de Filosofia em 1974 sob o título Teocentrismo e beatitude: sobre a atualidade do pensamento de Santo Tomás de Aquino. Nesse profundo texto, é ressaltada a atualidade de Tomás de Aquino e o caráter “epocal”[9] de sua obra. Entretanto, aí mesmo, Padre Vaz procura deixar claro que “não podemos repetir santo Tomás. Podemos – e devemos interpretá-lo”.[10] Isso porque, sendo a obra do Aquinate uma obra do passado, é impossível fazê-la comensurável sem mais aos nossos problemas. Faz-se necessário lançar mão de uma adequada hermenêutica que leve em consideração o tempo de Tomás, a reconstituição crítica de seus textos e o nosso presente histórico, que, de algum modo, possa conter “a obra interpretada como uma das linhas de seu relevo”,[11] de modo que “interpretar o passado implique necessariamente interpelar o presente”.[12]

Sim; para o Padre Vaz, a atualidade de Santo Tomás se verifica porque o nosso presente com suas questões pode ser interpelado por sua obra verdadeiramente “epocal”. A releitura do Aquinate pode projetar luz para o pensar filosófico sobre o nosso tempo. Esse é um exercício de pensar filosoficamente a história da filosofia. É o que Padre Vaz, na esteira de Hegel, chama de Erinnerung ou “rememoração”.


[1] “É verdade que as tentativas de migração para uma nova terra humana, sob o signo das novas constelações teóricas, multiplicam-se no clima espiritual da chamada ‘modernidade’, mas nada parece indicar que, tendo uma vez ouvido a interpelação da Verdade e do Bem desde o horizonte do Ser, o homem disponha de estratégias teóricas válidas capazes de fechar esse horizonte e silenciar essa interpelação. Em outras palavras, nada indica que, não obstante a vigorosa vegetação de antiplatonismos contemporâneos, estejamos em condições de desmentir, por meio de procedimentos teóricos aceitáveis, o veredicto de Péguy: on ne dépasse pas Platon” (AF II, 157).
[2] LIMA VAZ, Henrique C. de. Escritos de filosofia III. Filosofia e cultura. São Paulo: Loyola, 1997, p. 320.
[3] Id. Escritos de filosofia VII. Raízes da modernidade. São Paulo: Loyola, 2002, p. 88.
[4] Cf. MENESES, Paulo. Vaz e Tomás de Aquino. In: MAC DOWELL, João A. (org). Saber filosófico, história e transcendência. São Paulo: Loyola, 2002, p. 65.
[5] Ibidem.
[6] In LIMA VAZ, Henrique C. de. Escritos de filosofia VI: Ontologia e história.
[7]LIMA VAZ, Henrique C. de. Tomás de Aquino: pensar a metafísica na aurora de um novo século. Síntese Nova Fase, v. 23, n. 73 (1995) 159-208.
[8] Escritos de filosofia VII. Raízes da modernidade. São Paulo: Loyola, 2002.
[9] “Epocal” aqui assume o sentido de “relevante”, isto é, uma obra que marcou profundamente o desenvolvimento do pensamento humano.
[10] EFI, 38
[11] EF I, 39.
[12] EF I, 39.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Lima Vaz lê Teilhard de Chardin

 O artigo “Teilhard de Chardin e a Questão de Deus”, de Henrique Cláudio de Lima Vaz, publicado na Revista Portuguesa de Filosofia, é uma profunda análise filosófico-teológica da obra de Pierre Teilhard de Chardin. A seguir, um resumo detalhado: ⸻ 1. Objetivo do artigo Lima Vaz pretende demonstrar a atualidade e o valor permanente do pensamento de Teilhard de Chardin. A chave de leitura é a centralidade da questão de Deus, que constitui o eixo estruturador de toda a sua obra. Para Teilhard, trata-se de responder à pergunta fundamental: é possível crer e agir à luz de Deus num mundo pós-teísta? ⸻ 2. Contexto histórico Teilhard, jesuíta, paleontólogo e filósofo, viveu as tensões entre fé e ciência no século XX. Apesar de suas intuições filosófico-teológicas audaciosas, foi marginalizado institucionalmente: não pôde publicar suas principais obras (O Fenômeno Humano, O Meio Divino) em vida. Seu pensamento ganhou grande repercussão no pós-guerra, tornando-se fenômeno editorial mundial. ...

A Igreja é abrigo para os seguidores de Cristo

  O abrigo contra os extremismos? A Igreja, que sabe que a virtude é uma mediania entre extremos viciosos. O abrigo contra o relativismo? A Igreja, que ensina que há um Lógos  eterno do qual o lógos humano participa e no qual encontra fundamento. O abrigo contra o absolutismo? A Igreja, que ensina que só Deus é o Absoluto , e toda palavra nossa não tem fim em si mesma nem faz o Absoluto presente como tal, mas aponta para Ele, a única e inesgotável Verdade.  O abrigo contra o fundamentalismo? A Igreja, que ensina que a Bíblia é Palavra de Deus na palavra humana , e, como tal, sujeita a limitações históricas.  O abrigo contra a tristeza? A Igreja, que anuncia a grande alegria do Evangelho, do perdão, da reconciliação e da vida sem fim.   O abrigo contra a falta de motivação e o desespero? A Igreja, que anuncia a esperança que não decepciona.  O abrigo contra a confusão de doutrinas? A Igreja, que interpreta autenticamente a Palavra de Deus.  O abrigo con...

Existir é ter recebido. Ulrich relê Tomás em chave personalista

 Seguindo pela linha de Tomás de Aquino, Ferdinand Ulrich se coloca dentro da tradição metafísica tomista, mas com uma sensibilidade profundamente renovada pela filosofia do século XX — especialmente pela fenomenologia e pelo personalismo. Vamos explorar como Ulrich lê e reinterpreta Tomás de Aquino em relação à questão do ser: ⸻ 1. O ser como actus essendi (ato de ser) Para Tomás de Aquino, a realidade mais profunda de um ente não é sua essência, mas seu esse — o ato de ser. Ulrich retoma esse princípio com força, insistindo que:  • O ser ( esse ) é mais fundamental que qualquer determinação formal ( essentia ).  • Todo ente é composto de essência e ato de ser, mas esse ato de ser não é algo que ele possua por si: é recebido.  • Daí, a criatura é “ser por participação”, em contraste com Deus, que é “ser por essência” — o ipsum esse subsistens . Para Ulrich, essa estrutura é a chave da relação: o homem, enquanto ente criado, está ontologicamente voltado para além de...