Pular para o conteúdo principal

Que é o homem?


Padre Elílio de Faria Matos Júnior


Com o desenvolvimento das ciências da natureza a partir do séc. XVII e das ciências do homem a partir do séc. XVIII, a muitos estudiosos parece não ser mais possível alcançar uma ideia unitária do homem. O saber tornou-se fragmentado. Considera-se o homem do ponto de vista da biologia, da teoria da evolução, da sociologia, da antropologia cultural, da psicologia etc, mas não se consegue encontrar aquele plano de compreensão capaz de unificar crítica e coerentemente o saber do homem sobre si mesmo. Por vezes uma determinada ciência pretende arvorar-se em única intérprete autorizada da compreensão do homem. Assim, define-se o homem sob o ponto de vista exclusivo da biologia ou da sociologia ou da antropologia cultural, o que a meu ver representa o maior perigo acadêmico.
Ora, é inegável que o homem é constituído por uma dimensão biológica, psicológica, sociológica, cultural... Mas o que constitui o homem como homem é inegavelmente a sua dimensão espiritual. O espírito é a categoria que, sem negar as demais categorias que constituem o ser do homem, assume-as, mostrando-se como condição de possibilidade de o homem expressar-se como homem propriamente dito. Nesse sentido, é a categoria do espírito que proprociona aquela compreensão do homem capaz de alcançar uma “ideia do homem”. 

Pelo espírito o homem se experimenta como um ser de razão e de liberdade. Evidentemente, o espírito não pode ser detectado pela observação empírica, própria das ciências na natureza, nem analisado pelos procedimentos das ditas ciências do homem. O espírito só pode ser reconhecido pela reflexão. O homem é, admiravelmente, capaz de se voltar para si mesmo e de experimentar-se como um ser racional e livre. Negar a dimensão espiritual do homem é cair em contradição, uma vez que, para negá-la, o homem precisa interrogar-se sobre si mesmo. Ora, o ato mesmo de interrogar-se sobre si mesmo é um ato em que o homem interrogante experimenta-se como razão e liberdade.

O homem, na verdade, não é espírito puro, mas é coroado pela dimensão espiritual. E é vivendo a vida do espírito que o homem expressa sua humanidade. Pela vida do espírito, o homem é capaz de ultrapassar, de alguma maneira, todas as determinações biológicas, psicológicas, sociológicas e culturais. Pelo espírito, o homem está aberto para a infinutude do ser e do bem, de modo que os contornos limitados da natureza e da sociedade não podem trazer-lhe satisfação plena. Há um “excesso ontológico” no homem que o leva a se ultrapassar constantemente. Só o Absoluto real pode trazer-lhe satisfação. Na verdade, em última análise, o homem é um ser para a Transcendência.

Comentários

  1. Robione Antonio Landim15 de maio de 2010 às 21:23

    Pe. Elílio,
    como assegurar, dentro da contemporaneidade, a tese de que o ser humano é "homo religiosus"? É o que o Sr. quis dizer quando afirma que o ser humano é um ser para a Transcedência?

    ResponderExcluir
  2. O pensamento contemporâneo promove, a títulos diversos, a "desconstrução" da ideia de homem como ser coroado pela dimensão espiritual. Estamos diante mesmo de um paradoxo: de um lado, o saber constituído desconstrói o homem em sua dignidade espiritual - o homem como pessoa -; de outro, nunca tivemos tanta insistência nos direitos da dignidade humana, a dignidade da pessoa.
    Pelo espírito, o homem é coextensivo, intencionalmente, ao Ser (em sua amplitude ilimitada); assim, só o Absoluto de existência pode ser o fundamento da abertura ilimitada do espírito, que não se satisfaz com realizações do mundo ou da história. É isso que faz do homem um ser essencialmente religioso.

    ResponderExcluir
  3. No meu recente artigo jornalístico intitulado "Missão dos pais", eu afirmo assim: "Considerando que o homem é, por natureza e por vocação, um ser religioso, os pais devem sempre esforçar-se por dar exemplo e testemunho, com a própria vida, de fé em Deus... Portanto, o ateísmo e o agnosticismo contrariam gravemente a educação espiritual que os pais devem oferecer aos filhos. Os pais têm a missão de ensinar os filhos a orar e a descobrir sua vocação de filhos de Deus" (Tribuna de Minas 27/05/2010).
    A Igreja considera que "em sua história, e até os dias de hoje, os homens têm expressado de múltiplas maneiras sua busca de Deus por meio de suas crenças e de seus comportamentos religiosos (orações, sacrifícios, cultos, meditações etc). Apesar das ambiguidades que podem comportar, estas formas de expressão são tão universais que o homem pode ser chamado de um ser religioso" (Catecismo da Igreja Católica nº 28). O Concílio Vaticano II declarou que o aspecto mais sublime da dignidade humana está nesta vocação do homem à comunhão com Deus. Este convite que Deus dirige ao homem, de dialogar com ele, começa com a existência humana. Pois se o homem existe, é porque Deus o criou por amor e, por amor, não cessa de dar-lhe o ser, e o homem só vive plenamente, segundo a verdade, se reconhecer livremente este amor e se entregar ao seu Criador.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Criação "ex nihilo"

Padre Elílio de Faria Matos Júnior Em Deus, e somente em Deus, essência e existência identificam-se. Deus é o puro ato de existir ( Ipsum Esse ), sem sombra alguma de potencialidade. Ele é a plenitude do ser. Nele, todas as perfeições que convém ao ser, como a unidade, a verdade, a bondade, a beleza, a inteligência, a vontade, identificam-se com sua essência, de tal modo que podemos dizer: Deus é a Unidade mesma, a Verdade mesma, a Bondade mesma, a Beleza mesma... Tudo isso leva-nos a dizer que, fora de Deus, não há existência necessária. Não podemos dizer que fora de Deus exista um ser tal que sua essência coincida com sua existência, pois, assim, estaríamos afirmando um outro absoluto, o que é logicamente impossível. Pela reflexão, pois, podemos afirmar que em tudo que não é Deus há composição real de essência (o que alguma coisa é) e existência (aquilo pelo qual alguma coisa é). A essência do universo criado não implica sua existência, já que, se assim fosse, o universo, contingen...

Marín-Sola e o desenvolvimento da teologia da graça

  Francisco Marín-Sola, um teólogo dominicano do século XX, foi um dos principais responsáveis pela reformulação da tradição bañeziana dentro do tomismo. Ele buscou suavizar alguns aspectos da doutrina da graça e predestinação, especialmente no que diz respeito à relação entre a liberdade humana e a causalidade divina. Sua obra tentou conciliar a soberania absoluta de Deus com uma maior ênfase na cooperação humana, evitando o determinismo implícito no modelo de Bañez e Garrigou-Lagrange. ⸻ 1. Contexto da Reformulação de Marín-Sola • A escola tomista tradicional, especialmente na versão de Domingo Bañez e Reginald Garrigou-Lagrange, defendia a moción física previa, segundo a qual Deus pre-move infalivelmente a vontade humana para o bem ou permite o pecado através de um decreto permissivo infalível. • Essa visão levantava críticas, pois parecia tornar Deus indiretamente responsável pelo pecado, já que Ele escolhia não conceder graça eficaz a alguns. • Francisco Marín-Sola...

Se Deus existe, por que o mal?

O artigo ( leia-o aqui ) Si Dieu existe, pourquoi le mal ?,  de Ghislain-Marie Grange, analisa o problema do mal a partir da teologia cristã, com ênfase na abordagem de santo Tomás de Aquino. O autor explora as diversas tentativas de responder à questão do mal, contrastando as explicações filosóficas e teológicas ao longo da história e destacando a visão tomista, que considera o mal uma privação de bem, permitido por Deus dentro da ordem da criação. ⸻ 1. A questão do mal na tradição cristã A presença do mal no mundo é frequentemente usada como argumento contra a existência de um Deus onipotente e benevolente. A tradição cristã tem abordado essa questão de diferentes formas, tentando reconciliar a realidade do mal com a bondade e a onipotência divinas. 1.1. A tentativa de justificar Deus Desde a Escritura, a teologia cristã busca explicar que Deus não é o autor do mal, mas que ele é uma consequência da liberdade das criaturas. No relato da queda do homem (Gn 3), o pecado de Adão e E...