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Padre Vaz e a Antropologia - parte I

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Padre Elílio de Faria Matos Júnior


A grande marca da antropologia elaborada por Padre Vaz é o seu caráter decididamente ontológico. Padre Vaz, na verdade, não se contenta em fazer uma antropologia regional do homem, isto é, uma antropologia que se submetesse à dimensão corporal ou psíquica ou ainda à dimensão mundana ou societária do homem sem jamais atingir a consideração do ser do homem enquanto tal, que, na, visão de Padre Vaz, inclui a dimensão espiritual, pela qual o homem, constitutivamente, está aberto ao absoluto formal da Verdade e do Bem e ao Absoluto existencial, ou seja, Deus. E é exatamente em virtude de seu caráter ontológico, que a antropologia vaziana irá cruzar-se com a metafísica, de modo que, pela via do discurso antropológico, poderemos explicitar as condições de possibilidade da metafísica. Mostraremos que, para Padre Vaz, sem metafísica, não é possível a antropologia ou um discurso “completo” sobre o homem.

Foi a partir do fins da Idade Média que passou a haver uma inversão do vetor do dinamismo do espírito humano, que, em vez de reconhecer a transcendência irredutível do ser, começou a voltar-se cada vez mais sobre si mesmo, até se atingirem expressões inequívocas de uma descabida primazia da subjetividade sobre o ser, cuja expressão emblemática podemos verificar em Immanuel Kant. Uma “volta à metafísica” é um clamor de Padre Vaz que encontra seu profundo sentido não só nas razões histórico-doutrinais , mas também na constituição do homem mesmo. O homem, para Padre Vaz, está constitutivamente relacionado com o ser, e é exatamente sua abertura ao ser em toda sua universalidade e radical inteligibilidade que faz com que antropologia e metafísica estabeleçam liames tão estreitos e fortes que, negada a metafísica e o seu objeto, o ser, a antropologia não se poderia constituir como convém.

Sem negar as diversas dimensões que constituem o homem, Padre Vaz busca a dimensão transcendental do discurso antropológico. O termo transcendental possui dois sentidos: o clássico e o kantiano-moderno.[1] Transcendental, em sentido clássico, diz respeito ao ser, e às noções que lhe são conversíveis, em sua universalidade transcategorial, isto é, diz respeito ao ser enquanto ser. No domínio específico da antropologia, transcendental refere-se à dimensão que pretende tratar do ser mesmo do homem, ou do homem enquanto homem, sem reducionismos. A compreensão do homem, nesse sentido, é buscada tendo como princípio a consideração de todas as suas dimensões e a adequada articulação entre elas. Já transcendental, em sentido kantiano-moderno, diz respeito às condições de possibilidade do objeto enquanto tal. No domínio antropológico, refere-se à dimensão que garante as condições de possibilidade das outras dimensões do homem e, portanto, as condições de possibilidade da inteligibilidade do homem como homem ou como sujeito. Padre Vaz, com efeito pretende atingir a dimensão humana que, supassumindo dialeticamente as demais, possibilita compreender o homem enquanto tal, isto é, como aquele que exerce a vida segundo o espírito, que é a vida propriamente humana, segundo a expressão mesma de Padre Vaz.[2]

Na verdade, Padre Vaz tem absoluta clareza de que, desde o século XVIII, com o desenvolvimento das chamadas ciências do homem e com as modificações pelas quais passaram as sociedades ocidentais, a ideia do homem perdeu a sua unidade. E essa perda é tão grave que o filósofo brasileiro a qualifica de “aparentemente definitiva”.[3] Sim; sem dúvida, para muitos espíritos, já não é mais possível apresentar uma ideia unitária do homem, seja em virtude do acúmulo impressionante de informações disponibilizadas pelas diversas ciências, seja em virtude da situação e finitude da compreensão humana, que não estaria apta a levar a cabo uma ontologia do homem válida para todos os homens. A escola estruturalista acabou por tornar o homem um ser resolúvel em estruturas, o que significou a morte mesma do homem enquanto homem.

Não obstante, Padre Vaz, toma a peito a grande tarefa de buscar a unidade da idéia de homem, apesar dos reducionismos e as fragmentações a que o discurso do saber vem sendo submetido. A grande tarefa da Antropologia filosófica, na visão de Padre Vaz, é a de atingir tal unidade. “Como recuperar então uma certa ‘ideia unitária’ do homem?”, pergunta Padre Vaz.



[1] Padre Vaz, na verdade, atinge o nível filosófico do discurso sobre o homem. Trata-se do nível em que o discurso, recolhendo a compreensão do homem sobre si mesmo que se dá em determinado contexto histórico-cultural (o que Padre Vaz chama de pré-compreensão) e a compreensão alcançada pelas ciências (o que Padre Vaz chama de compreensão explicativa), eleva-se ao ser do homem enquanto tal, ou à ontologia do homem. Este nível do discurso antropológico é denominado por Padre Vaz como compreensão filosófica ou transcendental, sendo que o termo transcendental é tomado em seu sentido clássico, “ou seja, o sentido que pervade todos os aspectos do objeto ou, em outras palavras, considera o objeto enquanto ser” (AF I, 159), e em seu sentido kantiano-moderno, “ou seja, aquele que exprime  a compreensão filosófica como condição de possibilidade (e, portanto, de inteligibilidade) das outras formas de compreensão do homem: a pré-compreensão e a compreensão explicativa” (AF I, 159).
[2] “[…] a vida propriamente humana é a vida segundo o espírito” (AF I, 239).
[3] Cf. AF I, 157.

Comentários

  1. Olá Padre Elílio
    Sua benção
    Muito interessante o texto, obrigado por escreve-lo. Me motivou mais ainda a ler essa obra que parece ter muito valor

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  2. Caro Augusto,
    Vale a pena estudar a obra do saudoso Padre Vaz, herdeiro do que de melhor há na tradição tomista. Abraços.

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