Pular para o conteúdo principal

O mistério da Igreja

Padre Elílio de Faria Matos Júnior

No mistério da Igreja resplandece sua beleza

A Igreja é, antes de tudo, um mistério. Ela está associada de modo íntimo ao mistério de Jesus e, como tal, é parte integrante do plano salvífico de Deus para todos os povos. "Nela se revela o 'mistério' do desígnio eterno de Deus, que é o de dar à humanidade o acesso à salvação em Cristo e fazê-lo Chefe universal da Criação"[1]. Quando afirmamos ser a Igreja um mistério - mysterium -, intencionamos dizer que a Igreja ultrapassa seu aspecto visível e humano. Nela, no seu interior, habita a graça de Deus, que, conforme o desígnio divino, ordena-se à salvação, isto é, à santificação ou divinização dos homens. A Igreja, assim, é uma realidade humano-divina.

A Igreja remonta ao próprio Jesus[2]. Jesus é seu divino fundador: esta é uma proposição constantemente afirmada pelo Magistério e confirmada pelo Concílio Vaticano II: "O mistério da santa Igreja manifesta-se na sua fundação. Pois o Senhor Jesus iniciou a sua Igreja pregando a boa-nova, isto é, o advento do Reino de Deus prometido nas Escrituras..."[3]. Tendo sua base na vida e ministério de Jesus de Nazaré, que, num processo de continuidade e descontinuidade com o Antigo Testamento, quis reunir um novo povo edificado sobre uma nova e definitiva Aliança em seu sangue, a fundação da Igreja consolidou-se com a experiência da ressurreição e a infusão do Espírito Santo, o que garantiu aos apóstolos e discípulos a força e o vigor necessários para anunciar com destemor a vitória de Cristo sobre a morte vergonhosa da cruz e o plano de Deus a respeito dos homens em Cristo. O livro canônico neotestamentário dos Atos dos Apóstolos oferece-nos uma excelente leitura teológica dos primeiros passos da Igreja, o novo povo de Deus reunido em Cristo, a caminho do Reino definitivo. Nos Atos, a Igreja, na qual os homens entram pelo Batismo, nos é apresentada como comunidade guiada pelo Espírito de Cristo e vivificada pela vida divina.

A existência de uma Igreja da Nova Aliança está em perfeita linha de continuidade com o modo pelo qual Deus quis se manifestar ao homem, isto é, está em linha de continuidade com a estrutura sacramental da Revelação. Deus quis manifestar-se de modo visível. A humanidade de Cristo é o grande sacramento de Deus entre nós. A Igreja, por sua vez, é a comunidade estruturada visivelmente neste mundo, na qual e pela qual a vida divina em Cristo e pelo Espírito é comunicada aos homens. Se Cristo é o sacramento do Pai, a Igreja é o sacramento de Cristo. A Igreja, assinalada por notas sensíveis, como a unidade, a santidade, a catolicidade e a apostolicidade, é não apenas obra humana, mas, ao mesmo tempo, divina e humana, uma vez que Deus quis assumir seu aspecto visível e humano para fazer dele o portador da vida divina que nos configura a Cristo pelo Espírito. O Vaticano II afirma:

O único Mediador Cristo constituiu e incessantemente sustenta aqui na terra Sua santa Igreja, comunidade de fé, esperança e caridade, como organismo visível pelo qual difunde a verdade e a graça a todos. Mas a sociedade provida de órgãos hierárquicos e o corpo místico de Cristo, a assembléia visível e a comunidade espiritual, a Igreja terrestre e a Igreja enriquecida de bens celestes, não devem ser consideradas duas coisas, mas formam uma realidade complexa em que se funde o elemento divino e humano. É por isso, mediante uma não medíocre analogia, comparada ao mistério do Verbo encarnado. Pois como a natureza assumida indissoluvelmente unida a Ele serve ao Verbo Divino como órgão vivo de salvação, semelhantemente o organismo social da Igreja serve ao Espírito de Cristo que o vivifica para o aumento do corpo (cf. Ef 4,16)[4]

Com efeito, a obra realizada por Cristo não foi deixada ao léu ou ao vento. No plano de Deus, a Igreja, herdeira das antigas promessas feitas na primeira Aliança e povo escatológico reunido em vista da plena manifestação do Reino, ocupa um lugar insubstituível. É certo que Cristo é o único mediador da Nova Aliança; entretanto, ele quis tornar-se presente ao longo dos séculos pelo ministério da sua Igreja. Cristo vive a atua na e pela Igreja. Por isso a Igreja é necessária para a salvação[5]. "A Igreja é este o Corpo do qual Cristo é a Cabeça: ela vive dele, nele e por ele; ele vive com ela e nela"[6].

Por causa dessa riqueza teo-lógica da Igreja, podemos dizer com Santo Tomás que "a beleza da Igreja consiste, antes do mais, na sua riqueza interior; mas a sua atividade exterior contribui para tanto na medida em que ela procede do interior e conserva essa beleza interior"[7].

Com isso não negamos que o pecado esteja presente na Igreja, uma vez que ela se compõe também do elemento humano, e, por isso mesmo, ela está sempre necessitada de renovação; entretanto, afirmamos que a fidelidade de Deus não depende dos méritos humanos, de modo que a Igreja é como que o sacramento indefectível da íntima união com Deus; nela sempre podemos encontrar o Cristo, apesar do pecado de seus filhos. Assim, a Igreja é indefectivelmente santa e bela, na medida em que é sinal indefectível da presença de Cristo pelo Espírito.

----------------


[1] Gomes, Cirilo Folch. Riquezas da mensagem cristã. Rio de Janeiro: Lumen Christi, p. 484.

[2] Sobre a fundamentação desta afirmação, ver: Ratzinger, Cardeal Joseph. Compreender a Igreja hoje. Vocação para a comunhão. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 9-26.

[3] Lumen Gentium, n. 5.

[4] Gaudium et Spes, n. 8. Obs.: "Fala-se da necessidade da Igreja para a salvação em duplo sentido: necessidade da pertença à Igreja para aqueles que crêem em Jesus, e necessidade salvífica do ministério da Igreja que, por encargo de Deus, tem de estar a serviço da vinda do Reino de Deus [...] O Concílio Vaticano II faz sua a frase "extra Ecclesiam nulla salus". Porém, com ela se dirige explicitamente àqueles que conhecem a necessidade da Igreja para a salvação. O Concílio considera que a afirmação se funda na necessidade da fé e do batismo afirmada por Cristo (LG 14)" (Comissão Teológica Internacional. O Cristianismo e as Religiões. São Paulo: Loyola, 1997, p.37-38).

[5] Cf. Lumen Gentium, n. 14.

[6] Catecismo da Igreja Católica, n. 807.

[7] In IV Sententiarum, distinção 15, q. 3, a. 1, solução 4, ad 1, apud Escola "Mater Ecclesiae". Curso de eclesiologia. Rio de Janeiro, [s.n.], 1996.

Comentários

  1. Igreja: santidade e pecado



    Luís Eugênio Sanábio e Souza

    ESCRITOR



    O Concílio Vaticano II explica que caracteriza-se a Igreja Católica por ser humana e ao mesmo tempo divina, visível, mas ornada de dons invisíveis, operosa na ação e devotada à contemplação, presente no mundo e, no entanto, peregrina. E isso de modo que nela o humano se ordene ao divino e a ele se subordine, o visível ao invisível, a ação à contemplação e o presente à eternidade, que buscamos.
    A Igreja é santa em Cristo e pecadora em nós. A Igreja é santa, porque foi fundada por Jesus Cristo que a amou e a santificou (Mateus 16,18 ; Efésios 5,25) e por isso a Igreja é também santificante; Mas a Igreja também se confessa pecadora, não como fonte de pecado, mas no sentido de que nela o elemento humano, isto é, pecador, também está presente. Assim, “todos os membros da Igreja, inclusive seus ministros, devem reconhecer-se pecadores” (Catecismo da Igreja Católica nº 827). O saudoso Papa João Paulo II assim se expressou: “A Igreja Católica sabe que, graças ao apoio que lhe vem do Espírito Santo, as fraquezas, as mediocridades, os pecados, e às vezes as traições de alguns dos seus filhos, não podem destruir aquilo que Deus nela infundiu tendo em vista o seu desígnio de graça. E até “as portas do inferno nada poderão contra ela” (Mateus 16,18)” (Encíclica Ut unum sint nº 11). “A Igreja é santa, mesmo tendo pecadores em seu seio, pois não possui outra vida senão a da graça: é vivendo de sua vida que seus membros se santificam; é subtraindo-se à vida dela que caem nos pecados e nas desordens que impedem a irradiação da santidade dela. É por isso que ela sofre e faz penitência por essas faltas, das quais tem o poder de curar seus filhos, pelo sangue de Cristo e pelo dom do Espírito Santo” (Catecismo da Igreja Católica nº 827). A fé reconhece que é de Cristo que a Igreja recebe a sua unidade, a sua santidade, a sua catolicidade e a sua apostolicidade. Mas as manifestações históricas destas propriedades constituem sinais que falam também com clareza à razão humana. “A Igreja, em razão de sua santidade, de sua unidade católica, de sua constância invicta, é ela mesma um grande e perpétuo motivo de credibilidade e uma prova irrefutável de sua missão divina” (Concílio Vaticano I).
    Certamente que é injusta e desrespeitosa a fúria com que certos grupos poderosos estão atacando o Papa Bento XVI e a Igreja Católica, tomando como justificativa alguns casos de abusos sexuais cometidos por membros do clero. Para desacreditar a autoridade da Igreja, muitos querem transferir os problemas pessoais para a esfera institucional, ignorando que a Igreja sempre defendeu a retidão sexual e os valores da família, que a Igreja é a voz mais viva na defesa da vida desde a concepção até a morte natural e que a Igreja é a instituição que mais educa no mundo. Mas, como dizia Santo Agostinho, a Igreja “continua o seu peregrinar entre as perseguições do mundo e as consolações de Deus”.

    ResponderExcluir
  2. Igreja: santidade e pecado



    Luís Eugênio Sanábio e Souza

    ESCRITOR



    O Concílio Vaticano II explica que caracteriza-se a Igreja Católica por ser humana e ao mesmo tempo divina, visível, mas ornada de dons invisíveis, operosa na ação e devotada à contemplação, presente no mundo e, no entanto, peregrina. E isso de modo que nela o humano se ordene ao divino e a ele se subordine, o visível ao invisível, a ação à contemplação e o presente à eternidade, que buscamos.

    A Igreja é santa em Cristo e pecadora em nós. A Igreja é santa, porque foi fundada por Jesus Cristo que a amou e a santificou (Mateus 16,18 ; Efésios 5,25) e por isso a Igreja é também santificante; Mas a Igreja também se confessa pecadora, não como fonte de pecado, mas no sentido de que nela o elemento humano, isto é, pecador, também está presente. Assim, “todos os membros da Igreja, inclusive seus ministros, devem reconhecer-se pecadores” (Catecismo da Igreja Católica nº 827). O saudoso Papa João Paulo II assim se expressou: “A Igreja Católica sabe que, graças ao apoio que lhe vem do Espírito Santo, as fraquezas, as mediocridades, os pecados, e às vezes as traições de alguns dos seus filhos, não podem destruir aquilo que Deus nela infundiu tendo em vista o seu desígnio de graça. E até “as portas do inferno nada poderão contra ela” (Mateus 16,18)” (Encíclica Ut unum sint nº 11). “A Igreja é santa, mesmo tendo pecadores em seu seio, pois não possui outra vida senão a da graça: é vivendo de sua vida que seus membros se santificam; é subtraindo-se à vida dela que caem nos pecados e nas desordens que impedem a irradiação da santidade dela. É por isso que ela sofre e faz penitência por essas faltas, das quais tem o poder de curar seus filhos, pelo sangue de Cristo e pelo dom do Espírito Santo” (Catecismo da Igreja Católica nº 827). A fé reconhece que é de Cristo que a Igreja recebe a sua unidade, a sua santidade, a sua catolicidade e a sua apostolicidade. Mas as manifestações históricas destas propriedades constituem sinais que falam também com clareza à razão humana. “A Igreja, em razão de sua santidade, de sua unidade católica, de sua constância invicta, é ela mesma um grande e perpétuo motivo de credibilidade e uma prova irrefutável de sua missão divina” (Concílio Vaticano I).

    Certamente que é injusta e desrespeitosa a fúria com que certos grupos poderosos estão atacando o Papa Bento XVI e a Igreja Católica, tomando como justificativa alguns casos de abusos sexuais cometidos por membros do clero. Para desacreditar a autoridade da Igreja, muitos querem transferir os problemas pessoais para a esfera institucional, ignorando que a Igreja sempre defendeu a retidão sexual e os valores da família, que a Igreja é a voz mais viva na defesa da vida desde a concepção até a morte natural e que a Igreja é a instituição que mais educa no mundo. Mas, como dizia Santo Agostinho, a Igreja “continua o seu peregrinar entre as perseguições do mundo e as consolações de Deus”.

    ResponderExcluir
  3. Olá Padre, admirei seu blo e gostaria de tê-lo como mais um comentarista de meu blog, afirmando que eu sempre estarei por aqui, assim segue:
    www.teologiadaaplicabilidade.blogspot.com

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Bento XVI e a evangelização para o futuro: uma âncora de sentido para a Modernidade

A reflexão de Bento XVI sobre a evangelização caracteriza-se por uma visão singularmente lúcida acerca dos desafios da modernidade e do futuro religioso da humanidade. Mais do que propor métodos ou estratégias circunstanciais, o papa operou um deslocamento decisivo: a evangelização é, antes de tudo, um serviço à verdade que sustenta o ser humano, e não uma mera tentativa de adaptação às tendências culturais do momento ou mera estratégia de proselitismo como se fosse uma questão de ganhar adeptos para um clube. Nesse ponto se compreende seu diagnóstico central: quando a fé e a espiritualidade perdem vitalidade, a própria sociedade perde um precioso bem; quando a referência ao transcendente se fragiliza, a humanidade fica exposta a formas de dissolução espiritual que lembram processos de extinção. Desde o início de seu pontificado, Bento XVI reconheceu que a Igreja precisava enfrentar, com coragem intelectual e espiritual, uma situação nova. A crise da cultura ocidental — relativismo, pe...

Fenômeno, númeno e a assimptoticidade do sentido: uma leitura crítica de Kant

A distinção entre fenômeno e númeno é um dos eixos centrais da filosofia crítica de Immanuel Kant. Em sua formulação original, ela tem um propósito delimitador: mostrar que a razão humana só conhece aquilo que aparece segundo as condições da sensibilidade e as categorias do entendimento. Fenômeno é, assim, o objeto tal como é dado nas condições do nosso aparato cognitivo; númeno, o objeto considerado em si mesmo, independentemente dessas condições. A tese kantiana parece, à primeira vista, conduzir a um agnosticismo radical: se só conhecemos fenômenos, então nada sabemos — absolutamente nada — da realidade tal como ela é. Contudo, essa interpretação maximamente cética não é necessária, e, filosoficamente, tampouco sustentável. E aqui começa a possibilidade de uma leitura mais elevada. 1. Porque o agnosticismo radical não se sustenta Mesmo Kant, ao afirmar a existência problemática do “númeno” como “coisa em si”, admite que há algo que se encontra na base da experiência. A própria ideia...

Marxismo cultural? O problema é muito mais profundo

A questão mais candente dos nossos tempos em face da fé cristã não é o “marxismo cultural”, esse espantalho que nem existe como é propalado, nem o campo de atenção mais originário é o político ou social. O grande problema é aquele anunciado por Nietzsche há mais de um século, ele mesmo defensor do niilismo (e, por sinal, profundo anti-socialista e, por, conseguinte, anti-marxista): a mudança radical do espírito e a introdução de uma nova época em que “os valores supremos perdem o valor; falta a finalidade; falta a resposta ao ‘por quê?’”. Essa nova época tem raízes longínquas, mas Nietzsche é quem tem plena consciência de seu desabrochar no ocaso da modernidade.  Depois de Hegel, a filosofia (as suas correntes majoritárias) caiu no domínio irrestrito do devir. O marxismo, como hegelianismo invertido, ainda procura estabelecer como fundamento uma estrutura estável: a lei do desenvolvimento histórico. Mas em geral, depois de Hegel, qualquer estrutura, por mínima que seja, tende a ser...