Pular para o conteúdo principal

Kant e o "fim" da metafísica

Padre Elílio de Faria Matos Júnior

O texto abaixo apresenta de forma sumária a filosofia crítica de Kant, que acabou por não reconhecer a metafísica como ciência. Não concordamos com a posição kantiana. Nossas críticas à filosofia de Kant, conhecida também como idealismo crítico ou transcendental, virão em outros artigos, que, esperamos, serão publicados em breve neste blog. A crítica a Kant é necessária sobretudo porque a partir dele a metafísica tem sido rechaçada pelos filósofos de maneira geral. Pretendemos mostrar que ninguém rejeita impunemente a metafísica. Quem a nega cai na contradição de ter de supô-la no ato mesmo da pretensa negação.

***

Immanuel Kant talvez seja o maior nome da filosofia moderna e, com certeza, é um dos grandes da história da filosofia em geral. Destacou-se por ter elaborado um pensamento que, se de um lado está em linha de continuidade com a “tradição moderna” que se inicia com Descartes e se concentra sobre crítica do conhecimento; de outro, mostra-se inovador sob muitos aspectos e se estende com muito interesse para os campos da ética, dos juízos estéticos e também da reflexão sobre a religião e a história.[1] Kant mesmo tinha aguda consciência do caráter inovador de seu pensamento, tanto que reconheceu que sua filosofia havia realizado uma “revolução copernicana” nos domínios da filosofia, ou mais precisamente, no domínio da relação entre o sujeito e o objeto do conhecimento.[2] E dizia que a filosofia deve responder a três questões fundamentais: O que posso saber? O que devo fazer? O que me é dado esperar? E haveria uma quarta que englobaria em si as demais: Quem é o homem?

Podemos distinguir duas fases bem nítidas no pensamento de Kant: a pré-crítica e a crítica. A primeira compreende o período anterior à publicação da Dissertação de 1770. Nessa fase, Kant ainda professava a possibilidade de se atingirem realidades metaempíricas pelo conhecimento teórico. Com a Dissertação, começa o período crítico de seu pensamento, período que atinge seu apogeu com a sua mais notável obra, a Crítica da Razão Pura (CRP) – a primeira das três Críticas. A publicação da CRP rompe definitivamente com o modo de pensar dito não crítico ou pré-crítico e, traçando em termos nítidos o que pode e o que não pode ser conhecido pela razão em seu uso teórico, nega que os três grandes objetos da metafísica considerados por Kant – o mundo, a alma e Deus – possam ser objetos de conhecimento teórico.

A CRP, na verdade, estabelece que o conhecimento teórico só se realiza a partir do conúbio entre a sua forma e a sua matéria. A esta corresponde o dado sensível, enquanto que àquela, as formas a priori do sujeito cognoscente, a saber, as formas da sensibilidade (espaço e tempo) e as formas do entendimento (categorias). O entendimento é a faculdade das regras do conhecer. Disso resulta que o que podemos conhecer, conhecemo-lo tal como nos aparece – como fenômeno -, não como o que a coisa é em si mesma. O dado externo sempre chega a nós na condição das formas a priori do sujeito. Poderíamos dizer que, segundo Kant, as formas a priori do sujeito “alteram” o dado recebido, de modo que o conhecimento alcançado pelo sujeito não é conhecimento do que a coisa é em si mesma, e sim daquilo que o sujeito mesmo colocou na coisa. O sujeito é o construtor de seu objeto de conhecimento.

Kant, com efeito, tinha procurado fundar a metafísica em bases sólidas e se declarou um apaixonado por ela,[3] mas teve de reconhecer, segundo seu testemunho, que o domínio metafísico não é acessível ao conhecimento teórico do homem. Admirador da física galileano-newtoniana, via nela uma ciência segura, que aumentava nossos conhecimentos e gerava consenso universal. A metafísica só seria de fato ciência se se assemelhasse à física galileano-newtoniana. Mas a metafísica está sempre às voltas com seus antigos problemas e não é capaz de gerar o consenso universal, necessário para se falar de ciência. Eis a grande questão que levou Kant a desenvolver seu pensamento crítico.

Só se pode falar de ciência rigorosa se há a possibilidade de haver juízos sintéticos a priori, pois que estes, além de aumentarem o conhecimento ligando dois termos não intrinsecamente correlacionados, fazem-no de modo necessário e universal.[4] O reconhecimento da existência de juízos sintéticos a priori é a pedra de toque da crítica kantiana. Se se provar que não existem, como sustentam muitos autores, todo o edifício do sistema kantiano cai por terra.

Como são possíveis os juízos sintéticos a priori na física? A resposta a essa pergunta crucial relaciona-se com a justificação e validade das formas do entendimento – as categorias. Tal justificação é estabelecida por via de dedução. As categorias, bem como a consciência do Eu penso como poder de julgar, são a condição de possibilidade da unificação da multiplicidade caótica da experiência. Sem as categorias e a apercepção originária - a consciência do Eu penso - tal multiplicidade não poderia ser objeto de conhecimento para o homem. E são elas que garantem a necessidade e universalidade –o a priori – dos juízos da física. Entretanto, note-se bem: Kant conclui que as categorias só têm sentido se aplicadas à intuição sensível, isto é, elas – as categorias – são o poder unificador da multiplicidade sensível. Isso mostra que seu uso é legítimo só quando unido à experiência real ou possível.

Se a metafísica se valesse legitimamente de juízos sintéticos a priori, seu estatuto científico estaria garantido. A geometria e a matemática usam de tais juízos legitimamente, uma vez que se apóiam nas intuições puras da sensibilidade, que são também formais, o espaço e o tempo. A física, como vimos, também se vale legitimamente dos juízos sintéticos a priori, pois que aplica as categorias do entendimento (forma) à intuição empírica (matéria). A possibilidade de aplicação das categorias do entendimento à experiência possível é assim a razão da legitimidade de juízos sintéticos (porque aumentam o conhecimento) a priori (porque necessários e universais) na física.

O conhecimento da física (que é o protótipo do conhecimento teórico), pois, dá-se no âmbito do entendimento, que, para constituir o objeto, aplica suas categorias à intuição, que, por sua vez, se constitui pela recepção dos dados empíricos exteriores nas formas da sensibilidade, o espaço e o tempo. O mundo que pode ser conhecido teoricamente é, com efeito, um mundo dos fenômenos, um mundo regido estritamente pelo determinismo físico. É o mundo determinista da física galileio-newtoniana.

Entretanto, além do entendimento, que é então a faculdade das regras do conhecimento teórico, há a razão, que é a faculdade dos princípios e do incondicionado e, enquanto tal, unificadora do mundo inteligível. A unificação do mundo inteligível se dá pelas três grandes idéias pensadas pela razão – o mundo, a alma e Deus. São as idéias de que se ocupa a metafísica. Mas a metafísica, por seus objetos não poderem se resolver numa intuição sensível, não pode usar juízos sintéticos a priori de forma legítima para o conhecimento teórico.

Em síntese, a metafísica, segundo Kant, não é possível como teoria porque lhe falta a matéria do conhecimento, a intuição sensível. Sua pretensão de trabalhar com categorias para além do domínio da experiência possível leva-a a paralogismos – erros lógicos - e antinomias insolúveis. Ora, o domínio do teórico diz respeito àquilo que é – e que não pode ser de outro modo - e cujo conhecimento merece o título de objetivo e universal. Os paralogismos e antinomias da razão pura – âmbito metafísico – provam que seu conhecimento não pode ser teórico, e isto justamente por lhe faltar a intuição sensível.

Contudo, a razão, faculdade dos princípios e do incondicionado, não pode deixar de pensar as três grandes idéias – mundo, alma e Deus - que constituem a unificação absoluta para a qual tende, idéias que, não podendo ser conhecidas, permanecem, contudo, como reguladoras na medida em que podem ser pensadas. Apresentam-se como uma stella rectrix, ideal sempre buscado, capaz de levar o homem a procurar conhecer cada vez mais, mas nunca alcançado pelo conhecimento teórico, que está restrito ao âmbito dos fenômenos. A razão, assim, não pode valer-se legitimamente de um uso teórico, dado que suas idéias estão para além da experiência possível.


[1] Sobre a filosofia da história implicada na filosofia da religião de Kant, ver: HERRERO, Francisco Javier. Religião e história em Kant. São Paulo: Loyola, 1991. [2] Lima Vaz fala de “uma das mais profundas revoluções teóricas na história da filosofia” levada a cabo por Kant com a sua mais célebre obra, a Crítica da Razão Pura (cf. VAZ, op. cit., p.326). [3] Numa de suas obras mais severas para com a metafísica – Sonhos de um visionário -, Kant reconhece sua paixão: “a metafísica, pela qual tive de me apaixonar...”. [4] “[...] pergunta fundamental da Crítica da Razão Pura é: ‘Como são possíveis juízos sintéticos a priori?’ Essa pergunta é ao mesmo tempo a ‘questão vital’ da filosofia. Da resposta dependem, com efeito, a possibilidade da existência de um objeto próprio de investigação para a filosofia e a possibilidade de um conhecimento genuinamente filosófico, diferente do conhecimento das ciências analíticas e empíricas” (HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 50).

Comentários

  1. "Pretendemos mostrar que ninguém rejeita impunemente a metafísica. Quem a nega cai na contradição de ter de supô-la no ato mesmo da pretensa negação."

    E como ficaria o caso de Espinosa?

    Espinosa nega a transcendência...

    ResponderExcluir
  2. Todo pensador que pretenda elaborar uma teoria geral do mundo faz inevitavelmente metafísica, ainda que negue (ingenuamente) a metafísica. Mesmo os empiristas não deixam de fazer metafísica, uma metafísica da imanência.

    ResponderExcluir
  3. Devemos estar de acordo que que Espinosa não é empirista. Mas deixando as classificações de lado: uma "metafísica da imanência" não incorre precisamente em se fazer uma metafísica descaracterizada de tudo aquilo que lhe configura como tal? Ou seja, tem da metafísica apenas o nome, tal como o Deus de Espinosa o é apenas em nome, haja vista que não possui nenhuma das características que perfazem Deus enquento tal...

    ResponderExcluir
  4. Sim; Espinosa não é empirista. O que quero expressar é que uma teoria geral do mundo ultrapassa o domínio da empiria ou das coisas físicas e, como tal, só pode ter uma sustentação metafísica. Existem apenas duas metafísicas, diante das quais devemos escolher: a metafísica da transcendência e a metafísica da imanência. Espinosa, embora não empirista, foi partidário da metafísica da imanência. Kant admitiu a transcendência apenas como uma ideia regulativa da razão e como objeto de fé racional. Já Agostinho, Plotino, Tomás de Aquino e outros defenderam com vigor a Transcendência real.

    ResponderExcluir
  5. Enfim, me repondam: qual a impressão que corresponde à idéia de Deus?
    Será que Deus não seria tão-somente a união de impressões simples?
    Afinal, apenas a metafísica afirma a existência de Deus.
    Portanto, atentai quanto ao fato de não etarem sendo dogmáticos com a metafísica, pois por conta da religião, a pedra de toque da vossa vida, estais sendo tendenciosos.
    Busque só a verdade, não tentem construir a verdade segundo suas crenças!

    ResponderExcluir
  6. Vejamos cada uma das qualidades atribuídas ao sujeito “Deus” ou à ideia de Deus. Imaterial: portanto, não espacial; infinito: portanto, não espacial; eterno: portanto, não temporal; incausado: portanto, sem causa; princípio e fundamento de tudo: portanto, acima e fora de toda a realidade conhecida ou incondicionado.
    A ideia metafísica de Deus é a ideia de um ser que não pode nos aparecer sob a forma do espaço e tempo; de um ser ao qual a categoria de causalidade não se aplica; de um ser que, nunca tendo sido dado a nós, é posto, entretanto, como fundamento e princípio de toda a realidade e de toda a verdade. Assim, a ideia metafísica de Deus escapa de todas as condições de possibilidade do conhecimento humano e, portanto, a metafísica usa ilegitimamente essa ideia para afirmar que Deus existe e para dizer o que ele é.
    Até agora, diz Kant, a metafísica tem sido uma insensatez dogmática. Tem sido a pretensão de conhecer aqueles seres que, justamente, escapam de toda possibilidade humana de conhecimento, pois são seres aos quais não se aplicam as condições universais e necessárias dos juízos, isto é, espaço, tempo, causalidade, qualidade, quantidade, substancialidade, etc. Essa metafísica não é possível.

    (Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.)

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Ponderações sobre o modo de dar ou receber a sagrada comunhão eucarística

Ao receber na mão o Corpo de Cristo, deve-se estender a palma da mão, e não pegar o sagrado Corpo com a ponta dos dedos.  1) Há quem acuse de arqueologismo litúrgico a atual praxe eclesial de dar ou receber a comunhão eucarística na mão. Ora, deve-se observar o seguinte: cada época tem suas circunstâncias e sensibilidades. Nos primeiros séculos, a praxe geral era distribuir a Eucaristia na mão. Temos testemunhos, nesse sentido, de Tertuliano, do Papa Cornélio, de S. Cipriano, de S. Cirilo de Jerusalém, de Teodoro de Mopsuéstia, de S. Agostinho, de S. Cesário de Arles (este falava de um véu branco que se devia estender sobre a palma da mão para receber o Corpo de Cristo). A praxe de dar a comunhão na boca passou a vigorar bem mais tarde. Do  concílio de Ruão (França, 878), temos a norma: “A nenhum homem leigo e a nenhuma mulher o sacerdote dará a Eucaristia nas mãos; entregá-la-á sempre na boca” ( cân . 2).  Certamente uma tendência de restringir a comunhão na mão começa já em tempos pa

Considerações em torno da Declaração "Fiducia supplicans"

Papa Francisco e o Cardeal Víctor Manuel Fernández, Prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé Este texto não visa a entrar em polêmicas, mas é uma reflexão sobre as razões de diferentes perspectivas a respeito da Declaração Fiducia supplicans (FS), do Dicastério para a Doutrina da Fé, que, publicada aos 18 de dezembro de 2023, permite uma benção espontânea a casais em situações irregulares diante do ordenamento doutrinal e canônico da Igreja, inclusive a casais homossexuais. O teor do documento indica uma possibilidade, sem codificar.  Trata-se de uma benção espontânea,  isto é, sem caráter litúrgico ou ritual oficial, evitando-se qualquer semelhança com uma benção ou celebração de casamento e qualquer perigo de escândalo para os fiéis.  Alguns católicos se manifestaram contrários à disposição do documento. A razão principal seria a de que a Igreja não poderia abençoar uniões irregulares, pois estas configuram um pecado objetivo na medida em que contrariam o plano divino para a sex

Absoluto real versus pseudo-absolutos

. Padre Elílio de Faria Matos Júnior  "Como pensar o homem pós-metafísico em face da exigência racional do pensamento do Absoluto? A primeira e mais radical resposta a essa questão decisiva, sempre retomada e reinventada nas vicissitudes da modernidade, consiste em considerá-la sem sentido e em exorcisar o espectro do Absoluto de todos os horizontes da cultura. Mas essa solução exige um alto preço filosófico, pois a razão, cuja ordenação constitutiva ao Absoluto se manifesta já na primeira e inevitável afirmação do ser , se não se lança na busca do Absoluto real ou se se vê tolhida no seu exercício metafísico, passa a engendrar necessariamente essa procissão de pseudo-absolutos que povoam o horizonte do homem moderno" (LIMA VAZ, Henrique C. de. Escritos de filosofia III. Filosofia e cultura. São Paulo: Loyola, 1997). Padre Vaz, acertadamente, exprime a insustentabilidade do projeto moderno, na medida em que a modernidade quer livrar-se do Absoluto real, fazendo refluir