Pular para o conteúdo principal

Crise de sentido e busca de Deus

Padre Elílio de Faria Matos Júnior

Hoje assistimos, atônitos, a uma grave crise que atinge a civilização como tal. As expressões de tal crise, encontramo-las sob variadas formas, desde a tresloucada posição de não poucos jovens diante da vida, posição esta marcada sobretudo pelo hedonismo (procura do prazer imediato e, não raro, irresponsável), ao problema ético ou moral que afeta a instituição familiar, a sociedade civil e o Estado, na política e na economia.

A crise deve-se sobretudo à falta de sentido. Com efeito, se não se vê com certa clareza o sentido a imprimir à existência, aí então perdem-se as condições de ordenar as coisas conforme uma escala de valores e dá-se lugar à confusão, ao imediatismo e à busca egoísta de "vantagens" pessoais.

A cultura moderna foi aos poucos tirando do homem o que lhe é mais próprio: a capacidade e o desejo de contemplar o sentido das coisas. As questões últimas (Donde venho? Quem sou? Para onde vou?) foram relegadas à condição de perguntas sem sentido. O que interessa à modernidade é o domínio da natureza, a técnica. Somente o conhecimento empiricamente constatável teria lugar (cientificismo). As perguntas fundamentais da vida humana deveriam ser deixadas de lado, pois o ser em si mesmo não teria sentido algum. O homem enquanto ser de transcendência seria um absurdo.

"Ao sábio compete ordenar", já sentenciava S. Tomás de Aquino (Summa contra gentes, I,1). É próprio da virtude da sabedoria, contemplando o todo, isto é, possuindo uma cosmovisão (uma visão global sobre a existência), ordenar os meios em conformidade com os fins. Nesse sentido, o sábio por excelência é aquele que tudo sabe ordenar em conformidade com o fim último de todas as coisas. Mas é justamente a virtude da sabedoria que está sendo esquecida entre nós. Sabemos muitas coisas, é certo. Certamente o homem jamais alcançou o saber científico e técnico de nossa geração. Mas, hoje, esquecemos a sabedoria – sapientia -, que não consiste simplesmente no saber particularizado do mundo técnico-científico, mas na capacidade de contemplar o todo, perceber o seu sentido e colocar-se em conformidade com ele. A capacidade de chegar a algo de básico, de absoluto. Se não se é capaz de contemplar o todo, não se é propriamente homem, mas se recai na imediatidade simplesmente animal, instintiva e cega. "O filósofo é aquele que vê o todo" (Platão).

Contemplar o todo significa dar-se conta da inteligibilidade radical de todas as coisas. E dar-se conta da inteligibilidade radical de todas as coisas implica ultrapassar a contingência do mundo para radicar-se no fundamento último de tudo. O homem é por natureza aberto ao todo: "O homem ultrapassa infinitamente o homem" (Blaise Pascal). A abertura do homem ao infinito do ser deve levá-lo a divisar o Ser mesmo, infinitamente real, "Aquele que é" (Ex 3,14), o Deus bendito pelos séculos. É essa mesma abertura que faz com que o homem não se contente com a "mundanidade", que não tem em si mesma a razão de seu ser. A busca pelo fundamento último de tudo não pode terminar senão em Deus. O mundo e o homem não se explicam a si mesmos, mas encontram sua razão de ser n'Aquele cuja essência é o próprio ato de existir.

Foi exatamente por ter esquecido o Absoluto, Deus mesmo, para o qual o homem foi feito, que nossa sociedade, desorientada, não sabe relacionar os meios com os fins. Aliás, nem sabe mesmo o que é meio e o que é fim. A Ética, carente do fundamento último das coisas, agita-se aos sabor das ideologias quando não se vê absorvida pelo niilismo. Ultimamente, frente aos absurdos cometidos pelo homem contra o próprio homem, procura-se, é verdade, um fundamento para a Ética. Tal fundamento, na verdade, está inscrito na Lei Natural, cujo porta-voz é a consciência humana bem formada. Entretanto, nem mesmo a Lei Natural será sólida base para a Ética se seu Autor, que lhe dá sentido e consistência de modo absoluto, for esquecido.

A crise do homem de hoje, em última análise, é uma crise religiosa. Se a criatura não vive em sintonia com seu centro, o Criador, desorienta-se. Este Criador, há dois mil anos, dignou-se em sua benignidade manifestar-se visivelmente aos homens em Jesus de Nazaré. A humanidade de Cristo tornou-se, assim, o sacramento do Eterno no tempo, o instrumento por meio do qual se nos abre o caminho para Deus, em quem encontraremos repouso e resposta para nossos mais legítimos anseios, anseios estes que este mundo contingente não pode nunca satisfazer.

Mais do que nunca, os cristãos somos chamados a ser "Mensageiros do Sentido", a anunciar ao mundo a boa-nova que nos vem do alto por Jesus Cristo, a proclamar que nossa vida tem sua razão de ser, mesmo se ela é, no presente momento, assinalada pelo sofrimento, pois "Deus, sumamente bom e todo-poderoso, jamais permitiria o mal se não pudesse dele tirar um bem maior" (S. Agostinho).

Encerrando, faço minhas as palavras do teólogo italiano Bruno Forte: "De modo particular, no tempo de penúria de esperança que é a época pós-moderna, deve o discípulo ser com sua vida antecipação militante da alegria da vida eterna, vitoriosa sobre o sofrimento, sobre o mal e sobre a morte, prometida em Cristo em seu regresso ao Pai. Apesar das provas e das contradições do presente, o povo de Deus é chamado a exultar desde agora na esperança" (A essência do cristianismo, Vozes, 2003).

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Ponderações sobre o modo de dar ou receber a sagrada comunhão eucarística

Ao receber na mão o Corpo de Cristo, deve-se estender a palma da mão, e não pegar o sagrado Corpo com a ponta dos dedos.  1) Há quem acuse de arqueologismo litúrgico a atual praxe eclesial de dar ou receber a comunhão eucarística na mão. Ora, deve-se observar o seguinte: cada época tem suas circunstâncias e sensibilidades. Nos primeiros séculos, a praxe geral era distribuir a Eucaristia na mão. Temos testemunhos, nesse sentido, de Tertuliano, do Papa Cornélio, de S. Cipriano, de S. Cirilo de Jerusalém, de Teodoro de Mopsuéstia, de S. Agostinho, de S. Cesário de Arles (este falava de um véu branco que se devia estender sobre a palma da mão para receber o Corpo de Cristo). A praxe de dar a comunhão na boca passou a vigorar bem mais tarde. Do  concílio de Ruão (França, 878), temos a norma: “A nenhum homem leigo e a nenhuma mulher o sacerdote dará a Eucaristia nas mãos; entregá-la-á sempre na boca” ( cân . 2).  Certamente uma tendência de restringir a comunhão na mão começa já em tempos pa

Considerações em torno da Declaração "Fiducia supplicans"

Papa Francisco e o Cardeal Víctor Manuel Fernández, Prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé Este texto não visa a entrar em polêmicas, mas é uma reflexão sobre as razões de diferentes perspectivas a respeito da Declaração Fiducia supplicans (FS), do Dicastério para a Doutrina da Fé, que, publicada aos 18 de dezembro de 2023, permite uma benção espontânea a casais em situações irregulares diante do ordenamento doutrinal e canônico da Igreja, inclusive a casais homossexuais. O teor do documento indica uma possibilidade, sem codificar.  Trata-se de uma benção espontânea,  isto é, sem caráter litúrgico ou ritual oficial, evitando-se qualquer semelhança com uma benção ou celebração de casamento e qualquer perigo de escândalo para os fiéis.  Alguns católicos se manifestaram contrários à disposição do documento. A razão principal seria a de que a Igreja não poderia abençoar uniões irregulares, pois estas configuram um pecado objetivo na medida em que contrariam o plano divino para a sex

Absoluto real versus pseudo-absolutos

. Padre Elílio de Faria Matos Júnior  "Como pensar o homem pós-metafísico em face da exigência racional do pensamento do Absoluto? A primeira e mais radical resposta a essa questão decisiva, sempre retomada e reinventada nas vicissitudes da modernidade, consiste em considerá-la sem sentido e em exorcisar o espectro do Absoluto de todos os horizontes da cultura. Mas essa solução exige um alto preço filosófico, pois a razão, cuja ordenação constitutiva ao Absoluto se manifesta já na primeira e inevitável afirmação do ser , se não se lança na busca do Absoluto real ou se se vê tolhida no seu exercício metafísico, passa a engendrar necessariamente essa procissão de pseudo-absolutos que povoam o horizonte do homem moderno" (LIMA VAZ, Henrique C. de. Escritos de filosofia III. Filosofia e cultura. São Paulo: Loyola, 1997). Padre Vaz, acertadamente, exprime a insustentabilidade do projeto moderno, na medida em que a modernidade quer livrar-se do Absoluto real, fazendo refluir