Pular para o conteúdo principal

A cruz de Cristo, nossa salvação


Padre Elílio de Faria Matos Júnior

Hoje é Sexta-feira Santa, dia em que a Santa Igreja comemora (commemorat) a paixão e morte de Nosso Senhor. A meditação piedosa desse evento ao mesmo tempo doloroso e salvador é de grande proveito para o progresso da vida espiritual.

Santo Tomás ensina que na imagem do Crucificado está presente, como num compêndio, todo um programa de vida espiritual: “Quem quiser viver perfeitamente não deve fazer outra coisa senão desprezar o que Cristo desprezou na cruz, e desejar o que nela Ele desejou. Nenhum exemplo de virtude está ausente da cruz” (In Symbolum Apostolorum expositio, art. 4). De fato, na cruz de Cristo vemos a caridade suprema, a paciência confiante, a obediência resoluta... Virtudes essas pelas quais Cristo cancela o pecado do homem, que consiste exatamente no movimento inverso à caridade, à paciência, à obediência...

Sim; na cruz Cristo não apenas nos deu um grande exemplo de virtude, mas também cancelou o pecado do homem, de modo que este pudesse ver-se justificado pela graça que vem de Cristo mediante a fé. A obediência de Cristo desfez o nó da desobediência de Adão e “assim, o homem, pela justiça de Cristo, foi libertado” (Santo Tomás, Summa theologiae, III, q. 46, a. 1).

Embora Deus pudesse ter-se valido de outros meios para nos justificar, ou mesmo pudesse simplesmente ter-nos concedido o perdão sem mais, quis, no entanto, que fôssemos libertados do pecado mediante a cruz de Cristo. Não que Deus tenha organizado a paixão e a morte do Filho induzindo os homens a entregá-lo para ser crucificado, mas no sentido de que, tendo sido realizadas contra Deus as ações que levaram o Inocente ao patíbulo, por intermédio de sua “permissão”, tais ações foram subordinadas por Deus à salvação dos homens, contra todas as intenções de seus autores.

A nossa justificação pela cruz mostra-se conveniente de diversos modos. Além do exemplo que Cristo nos deu na cruz, incitando-nos a desprezar o pecado e a amar a virtude, o evento do Calvário soube unir de modo admirável a justiça e a misericórdia divinas no esplendor do amor. O Papa Bento XVI fala de um virar-se de Deus contra si mesmo, com o qual ele se entrega para levantar o homem e salvá-lo" (Encíclica Deus caritas est, 12). Esta curiosa expressão do Papa - virar-se de Deus contra si mesmo - quer significar que tanto a justiça quanto a misericórdia de Deus foram harmonizadas de modo admirável na cruz. Pela justiça, o homem devia satisfazer a Deus por causa do pecado. Mas pela misericórdia, convinha que Deus lhe perdoasse. Aconteceu, pois, que foi o próprio Deus que realizou essa satisfação pelo homem, para o homem e como homem, em Jesus Cristo, já que o homem sozinho não teria força para realizá-la. Deus como que se virou contra si mesmo

E, assim, a justiça de Deus não foi negligenciada, e sua misericórdia se mostrou de forma extraordinária. Desse modo, pela cruz, o amor de Deus pelo homem se manifestou com muito mais evidência e poder do que se teria manifestado se Deus simplesmente lhe tivesse perdoado sem mais (cf. Santo Tomás, Summa theologiae, III, q. 46, a. 1, ad tertium).

Comentários

  1. Explicação perfeita do mistério da Salvação, já que muitos de nós ainda temos dificuldades de entender como Deus amou o mundo ao enviar seu Filho,Nosso Senhor Jesus Cristo.
    Me ajudou demaaaaais em uma pregação que darei. Obrigado!!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Existir é ter recebido. Ulrich relê Tomás em chave personalista

 Seguindo pela linha de Tomás de Aquino, Ferdinand Ulrich se coloca dentro da tradição metafísica tomista, mas com uma sensibilidade profundamente renovada pela filosofia do século XX — especialmente pela fenomenologia e pelo personalismo. Vamos explorar como Ulrich lê e reinterpreta Tomás de Aquino em relação à questão do ser: ⸻ 1. O ser como actus essendi (ato de ser) Para Tomás de Aquino, a realidade mais profunda de um ente não é sua essência, mas seu esse — o ato de ser. Ulrich retoma esse princípio com força, insistindo que:  • O ser ( esse ) é mais fundamental que qualquer determinação formal ( essentia ).  • Todo ente é composto de essência e ato de ser, mas esse ato de ser não é algo que ele possua por si: é recebido.  • Daí, a criatura é “ser por participação”, em contraste com Deus, que é “ser por essência” — o ipsum esse subsistens . Para Ulrich, essa estrutura é a chave da relação: o homem, enquanto ente criado, está ontologicamente voltado para além de...

A Igreja é abrigo para os seguidores de Cristo

  O abrigo contra os extremismos? A Igreja, que sabe que a virtude é uma mediania entre extremos viciosos. O abrigo contra o relativismo? A Igreja, que ensina que há um Lógos  eterno do qual o lógos humano participa e no qual encontra fundamento. O abrigo contra o absolutismo? A Igreja, que ensina que só Deus é o Absoluto , e toda palavra nossa não tem fim em si mesma nem faz o Absoluto presente como tal, mas aponta para Ele, a única e inesgotável Verdade.  O abrigo contra o fundamentalismo? A Igreja, que ensina que a Bíblia é Palavra de Deus na palavra humana , e, como tal, sujeita a limitações históricas.  O abrigo contra a tristeza? A Igreja, que anuncia a grande alegria do Evangelho, do perdão, da reconciliação e da vida sem fim.   O abrigo contra a falta de motivação e o desespero? A Igreja, que anuncia a esperança que não decepciona.  O abrigo contra a confusão de doutrinas? A Igreja, que interpreta autenticamente a Palavra de Deus.  O abrigo con...

A importância de Étienne Gilson para a Metafísica

Étienne Gilson (1884-1978) foi um dos mais importantes historiadores da filosofia medieval e um grande defensor do realismo tomista, especialmente na sua interpretação da metafísica de Santo Tomás de Aquino. Sua contribuição é notável por vários motivos: 1. Redescoberta da Metafísica Tomista No século XIX e início do século XX, o pensamento de Santo Tomás era muitas vezes reduzido a um essencialismo aristotélico ou a uma teologia sistemática, sem a devida ênfase em sua metafísica do ser ( esse ). Gilson foi um dos responsáveis por recuperar e enfatizar a originalidade de Tomás, destacando que: • A metafísica tomista não é apenas um estudo da essência das coisas, mas principalmente uma investigação sobre o ser como ato ( actus essendi ). • Tomás de Aquino supera Aristóteles, pois enquanto Aristóteles se concentrava no “ente enwuabro ente” ( ens qua ens ), Tomás identificava o “ser” ( esse ) como o princípio mais profundo da realidade. Essa interpretação levou Gilson a cunhar a e...