Pular para o conteúdo principal

Deus no Antigo Testamento

A concepção que Israel alcançou de Deus se deu no âmbito da história, não da reflexão filosófica. Foi a experiência da ação de Deus em sua história que revelou o rosto de Deus ao povo, experiência esta que se acha documentada de forma canônica nos livros bíblicos do Antigo Testamento. O conjunto desses livros indica uma evolução que se elaborou durante quase mil anos, e, por isso mesmo, como registro da experiência de Deus que age poderosamente na história de Israel, não se presta a um tratado sistemático ou catecismo sobre Deus. Tal evolução percorre um caminho que vai desde o "Deus da história", experimentado como aquele que age junto de seu povo, ao "Deus cósmico", criador do céu e da terra. No entanto, ao estudioso perspicaz, é possível detectar certos atributos que pretendem dizer qual é o rosto desse Deus que age na história de Israel e manifesta, no percurso mesmo da história, sua identidade.

De acordo com os estratos mais antigos do Antigo Testamento, a experiência de Deus primeiramente se dá como uma experiência familiar: Deus é o Deus dos pais, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó. Deus escolhe a família para si e mantém relações pessoais com ela e promete-lhe descendência[1]. Entretanto, a experiência decisiva de fé no Antigo Testamento se dá por ocasião da libertação da escravidão do povo hebreu do Egito, da Aliança estabelecida no Sinai e da promessa da terra de Canaã. É nesse acontecimento, a libertação do Egito, a Aliança e a promessa da terra, que Israel experimenta com vigor inédito a ação de Deus em seu favor e se constitui como o povo da Aliança. O nome do Deus que liberta o povo com poder e majestade, é Iahweh[2]. Segundo a tradição javista, o culto a Iahweh remonta aos tempos anteriores ao dilúvio[3]. Pela tradição sacerdotal, Iahweh ter-se-ia dado a conhecer aos patriarcas com o nome de El-Shaddai[4] . Para o texto de Ex 3,12ss, de tradição eloísta, é no momento da libertação egípcia que Deus revela seu verdadeiro nome - Iahweh - pelo qual deseja ser reconhecido doravante pelos israelitas.

Iahweh, ao que tudo indica, segundo os estudiosos, é uma forma primitiva do verbo ser. A tradição o traduziu por Aquele que é. Essa designação, na tradição filosófica, se tornaria a noção mais apropriada que o homem pode aplicar a Deus, no sentido de, por ela, designar o Ser Absoluto, o Ato Puro de existir. Entretanto, certamente a designação de Deus como Iahweh não foi fruto de especulações filosóficas entre os israelitas. Há várias interpretações para o nome: indicaria a solicitude de Deus para com o povo, e, assim, deveria ser traduzido por "Eu sou aquele que é convosco"; indicaria a existência do Deus verdadeiro em contraposição ao nada dos outros deuses; ou mesmo seria um artifício para evitar nomear Deus, pois Deus não se deixa nomear pelos homens, para que o dominem. Como quer que seja, Iahweh indica positividade e concretude, porque está associado à ação divina na libertação de Israel por meio de Moisés, com os atributos divinos de bondade que supõe.

Com os profetas, os atributos de Deus, tais como o poder sobre Israel, sobre outras nações e sobre o mundo inteiro, a misericórdia, a justiça, a santidade, desenvolvem-se. A partir do século VI, por ocasião dos reveses do Exílio, a idéia do Deus único, criador e organizador da matéria afirma-se de vez. Os escritos apocalípticos vétero-testamentários enfatizam a providência de Deus, em cujas mãos está a sorte de todos os povos e o domínio direto sobre todas as coisas.

A fé vétero-testamentária no Deus único, criador do céu e da terra, ao mesmo tempo transcendente e imanente ao mundo, é o resultado da experiência histórica da ação de Iahweh, que, por sua vez, mostra-se, cada vez mais, no decorrer dos acontecimentos, o Soberano dos povos e da natureza, o Princípio último de toda realidade.

Em síntese, podemos dizer que o Antigo Testamento apresenta-nos Deus como único[5], pessoal[6], transcendente, santo, eterno[7], imutável[8], como alguém que ultrapassa os limites corpóreos[9], solícito para com os homens, benevolente, justo e sábio[10]; criador de tudo o que existe, infinito, como o Primeiro e o Último[11], como o Bem e a Beleza inebriante que causa gozo e admiração para quem o conhece e felicidade para quem o serve. Associado à idéia da beleza de Deus, o termo glória (kabod) é freqüentemente usado e designa propriedade exclusiva de Deus, significando a riqueza e a transcendência do divino Ser e o esplendor inebriante e terrificante de suas teofanias[12]. O livro da Sabedoria, partindo da observação da beleza das criaturas, convida a reconhecer a fonte de toda beleza, a Beleza mesma que as criou: "aprendam quanto lhes é superior o Senhor dessas coisas, pois foi a própria fonte da beleza que as criou"[13].

Enfim, percebemos um eixo central da auto-revelação de Deus no Antigo Testamento: transcendente ao mundo, Deus interessa-se por ele em sua ilimitada autodisponibilidade, não para ter mais alguma coisa, mas para que o mundo e o homem sejam e tenham em Deus mesmo a sua plenitude.
.
Padre Elílio de Faria Matos Júnior

[1] Cf. Gn 46,3.
[2] Cf. Ex 3,14.
[3] Cf. Gn 4,26.
[4] Cf. Gn 17,1; Ex 6,2-3.
[5]"Ouve, Israel, Iahweh, nosso Deus, é o único" (Dt 6,4).
[6] Sua personalidade não implica limitação, no sentido de ser uma entre outras pessoas, mas é experienciada como presença do Mistério no âmago da história e da vida das pessoas, Mistério este que é consciência, liberdade, vontade, palavra dirigida.
[7] Cf. Hab 1,12; Dt 32,40; Ex 15,18.
[8] Cf. Sb 7,27; Is 40,8; Sl 102,26-28.
[9] "Mesmo se a Escritura fala, várias vezes, de Deus como se ele tivesse um corpo, membros corpóreos, atribui a Deus coisas que não podem convir a um ser corpóreo: transcendência, eternidade, imutabilidade, onipresença" (Patfoort, A. O mistério do Deus vivo. Rio de Janeiro: Lumen Christi, 1983, p.43).
[10] Cf. Dt 10,14-15; Sl 116,6; Jr 24,6-7, Ez 11,19-20; Gn 18,25.
[11] Cf. Is 44,6; 48,12.
[12] Cf. Is 6,3-5; Ex 29,43; 33,18.20; 40,34ss.
[13] Sb 13, 3.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Luc Ferry, imanência e transcendência

  Segundo Luc Ferry, as religiões em geral sofrem um processo de imanentização. Ele diz que a grande conquista do pensamento laico foi a de superar todo tipo de autoridade externa. O poder não é mais do rei, mas do povo. A verdade não mais desce do céu, mas é tarefa da consciência. O indivíduo não é mais uma mera função do todo orgânico, mas é autônomo.  Nesse sentido, segundo Ferry, o discurso religioso tem procurado humanizar-se. Já que o paradigma da verdade exterior foi seriamente abalado pela modernidade, a verdade só pode ser encontrada no homem. Para não se tornar totalmente inexpressiva, a mentalidade religiosa tem procurado apoiar-se no humanismo do pensamento moderno, mas, ao fazer isso, reduz-se a mero enfeite da mentalidade laica. O que a religião acrescentaria ao humanismo imanentista? Apenas um sentimento, um elã espiritual marcado pela fé numa transcendência vaga.  Assim, as religiões ocidentais hoje falam muito mais de direitos humanos do que de direitos d...

O finito apela ao Infinito

  O ponto que trago remete a uma via metafísica negativa, onde a crítica da finitude do ente nos conduz, não apenas à constatação de sua limitação, mas à impossibilidade de que o limite tenha a última palavra sobre o ser. O nada não pode ser o “além do limite”, pois o nada não é. Assim, a própria noção de limite exige um ser sem limite – um ser que seja ser puro, que exclua toda não-existência. Vamos então desenvolver o argumento na forma de um discurso ontológico contínuo, com base nessa intuição: ⸻ A finitude como apelo ao ser ilimitado Começamos pela constatação mais imediata: há seres, mas os seres que encontramos são finitos. Eles não são tudo o que poderiam ser. São marcados pela limitação, pela mutabilidade, pela dependência. São entes que possuem o ser, mas não o são em sua plenitude. Essa constatação, longe de ser trivial, contém uma exigência profunda: se tudo o que existe fosse finito, então o ser mesmo estaria limitado. Haveria uma fronteira que o ser não ultrapassa. O ...

Confissões de um metafísico em tempos de niilismo

Não comecei pela dúvida, mas pela admiração. Não fui lançado à existência como quem acorda em um mundo estranho, mas como quem, ainda sem saber nomear, intui que há algo — e que esse algo brilha. Comecei pela confiança de que o ser tem sentido. E o primeiro a me dar palavras para esse pressentimento foi um frade medieval, Tomás, cuja inteligência parecia ajoelhar-se diante do real. A princípio, maravilhou-me a harmonia entre fé e razão: Deus não era o adversário do pensamento, mas sua origem e fim. Na Suma Teológica, encontrei não apenas respostas, mas um método de humildade intelectual, onde pensar é um ato de justiça ao ser. A filosofia, assim, se tornava oração: buscar o sentido do ente como quem busca o rosto do Pai. ⸻ Mas à medida que crescia em mim a luz da metafísica do esse, aumentava também a consciência das sombras que a modernidade lançou sobre o ser. O mundo que me cercava — um mundo de técnica, de cálculo, de vontades cegas — parecia ter perdido a capacidade de se pergunta...