Pular para o conteúdo principal

Existência de Deus

.
A existência de Deus é também uma questão filosófica, não só teológica. A nosso ver, foi Santo Tomás de Aquino (séc. XIII), grande gênio filosófico e teológico, quem condensou os argumentos filosóficos mais pertinentes para provar a existência de Deus: são as famosas cinco vias, que se encontram sintetizadas logo no início da grande obra do santo doutor, a Suma Teológica.

A primeira via parte do fato de que neste mundo há movimento (toda e qualquer passagem da potência ao ato). Ora, nada pode ser, ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, movente e movido, ou estar em potência e em ato; nada pode ser a causa do próprio movimento, e, então, é necessário admitir que tudo o que se move é movido por outro. Assim, se uma coisa qualquer se move, é necessário que ela se mova por outra, e essa outra por outra ainda. Mas, assim, não se pode ir ao infinito, pois é necessário admitir uma fonte absoluta do movimento. Se não existisse uma tal fonte, o movimento que há no mundo não seria inteligível, seria absurdo, uma vez que os moventes intermediários só movem se forem, por sua vez, movidos por um motor primeiro, fonte absoluta do movimento, assim como o bastão só move se for movido pela mão. É necessário, pois, admitir um Primeiro Movente Imóvel (não movido por nenhum outro), e a esse todos chamam Deus. Disso segue-se que Deus é eterno, sem princípio e sem fim, pois não se move (começar e ter fim implicam movimento, o que não pode existir no Primeiro Movente; Deus é, assim, atemporal, pois o tempo é precisamente a medida do movimento); Deus é também perfeitíssimo ou ato puro, pois, sendo imóvel, possui a plenitude da perfeição, não podendo adquirir nem perder perfeição alguma, é o Ipsum Esse Subsistens (o próprio Ser subsistente); n’Ele a essência identifica-se com o seu ser, que é puro ato de existir, sem limites ou margens. Deus é ainda simplicíssimo, pois se fosse composto seria mutável e imperfeito (o composto é resultado da união das partes e está em potência para a decomposição); sendo imóvel, é espiritual, uma vez que a matéria é essencialmente mutável; Deus é, enfim, todo-poderoso, já que por seu poder move todas as coisas. Desse modo, vê-se que o Primeiro Motor Imóvel não é o primeiro no sentido de que esteja no mesmo nível da série dos movidos, mas é o Primeiro de modo absoluto, ou seja, transcende infinitamente a série.

A segunda via é semelhante à primeira. Parte do fato de que as coisas deste mundo são causadas. Uma coisa é causada por outra, e essa outra por uma terceira. Na série das causas não é possível retroceder ao infinito, mas deve-se admitir a existência de uma Primeira Causa não causada, princípio de explicação de todas as causas intermediárias. Essa Causa é Deus. A Causa Primeira não se coloca no mesmo nível da série das causas segundas, mas lhe é absolutamente transcendente; não é uma causa entre outras, mas a Causa causarum (Causa das causas); não é uma causa categorial, mas a Causa tanscendental.

A terceira via se constrói a partir do fato de que as coisas deste mundo existem mas poderiam não existir, isto é, a sua existência é contingente. O contingente é aquilo que existe mas cuja existência não é necessária; não existia e veio a existir. O ser do contingente se deve a um outro. Se esse outro for, por sua vez, contingente, deve-se apelar a um outro ainda. Mas assim não é possível ir ao infinito; deve-se, pois, admitir um Ser Necessário que seja o fundamento da contingência em geral. É ainda aqui o princípio de causalidade que domina o argumento. Ora, se tudo fosse contingente, nada do que existe existiria, pois o contingente um dia não existiu. Mas algo existe. Logo, deve-se admitir que um Ser Necessário, não contingente, existe. A esse chamamos Deus.

A quarta via constata que há no mundo diversos graus de perfeição relativamente ao ser, à verdade, à bondade, à beleza. Ora, o mais e o menos só se podem dizer tais em relação ao Máximo. Existe, pois, a Perfeição Absoluta que é o Ser mesmo, a Verdade mesma, a Bondade mesma, a Beleza mesma, explicação e causa de tudo o que há de ser, verdade, bondade e beleza no mundo.

A quinta via se apóia no fato de que no mundo os seres naturais, sem inteligência, perseguem um objetivo definido, procedendo sempre ou na maioria das vezes com ordem. O mundo, em seu conjunto, é um magnífico e estupendo show de ordem e regularidade. Ora, tão firme ordenação, tão segura finalidade, exige uma Inteligência Suprema que tudo disponha e ordene, assim como a flecha que atinge o alvo exige a inteligência do arqueiro. Tal Inteligência é Deus. Esse é o argumento a que o homem moderno se mostra mais sensível. Com efeito, mais e mais, as ciências da natureza acenam para a necessidade de se admitir uma Inteligência Superior que reja o Universo. Einsten, professando a inteligibilidade e a ordenação da natureza das coisas, dizia que “Deus não joga dados com o mundo”.

Deve-se notar que as cinco vias são argumentos racionais de natureza filosófica ou metafísica. Elas não são argumentos científicos (ao modo das ciências modernas, que restringem seu objeto somente ao que pode ser resolúvel em uma verificação empírica), e, por isso mesmo, não estão sujeitas ao desenvolvimento das ciências. Na verdade, as cinco vias estão num nível de conhecimento superior ao das ciências empíricas: estão no nível do ser enquanto ser, de modo que seu valor epistemológico paira sobre as flutuações das ciências, o que vale dizer, seu valor é perene e não depende do veredicto das ciências naturais; numa palavra, seu valor é absoluto. Hoje em dia, infelizmente, elas caíram no esquecimento de muitos devido à falta de hábito metafísico do homem contemporâneo.

Pe. Elílio de Faria Matos Júnior
Arquidiocese de Juiz de Fora

Comentários

  1. Vossa bênção, pe.
    Bem interessante o modo como o sr expõe. Simples e bem didático.

    fausto

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Bento XVI e a evangelização para o futuro: uma âncora de sentido para a Modernidade

A reflexão de Bento XVI sobre a evangelização caracteriza-se por uma visão singularmente lúcida acerca dos desafios da modernidade e do futuro religioso da humanidade. Mais do que propor métodos ou estratégias circunstanciais, o papa operou um deslocamento decisivo: a evangelização é, antes de tudo, um serviço à verdade que sustenta o ser humano, e não uma mera tentativa de adaptação às tendências culturais do momento ou mera estratégia de proselitismo como se fosse uma questão de ganhar adeptos para um clube. Nesse ponto se compreende seu diagnóstico central: quando a fé e a espiritualidade perdem vitalidade, a própria sociedade perde um precioso bem; quando a referência ao transcendente se fragiliza, a humanidade fica exposta a formas de dissolução espiritual que lembram processos de extinção. Desde o início de seu pontificado, Bento XVI reconheceu que a Igreja precisava enfrentar, com coragem intelectual e espiritual, uma situação nova. A crise da cultura ocidental — relativismo, pe...

Marxismo cultural? O problema é muito mais profundo

A questão mais candente dos nossos tempos em face da fé cristã não é o “marxismo cultural”, esse espantalho que nem existe como é propalado, nem o campo de atenção mais originário é o político ou social. O grande problema é aquele anunciado por Nietzsche há mais de um século, ele mesmo defensor do niilismo (e, por sinal, profundo anti-socialista e, por, conseguinte, anti-marxista): a mudança radical do espírito e a introdução de uma nova época em que “os valores supremos perdem o valor; falta a finalidade; falta a resposta ao ‘por quê?’”. Essa nova época tem raízes longínquas, mas Nietzsche é quem tem plena consciência de seu desabrochar no ocaso da modernidade.  Depois de Hegel, a filosofia (as suas correntes majoritárias) caiu no domínio irrestrito do devir. O marxismo, como hegelianismo invertido, ainda procura estabelecer como fundamento uma estrutura estável: a lei do desenvolvimento histórico. Mas em geral, depois de Hegel, qualquer estrutura, por mínima que seja, tende a ser...

A Bíblia defende a submissão da mulher ao homem?

  O livro The Sexual Person: Toward a Renewed Catholic Anthropology , de Todd A. Salzman e Michael G. Lawler, aborda a questão da dominação do homem sobre a mulher na Bíblia de forma crítica e contextualizada. Os autores exploram como as Escrituras refletem as normas culturais de suas épocas e argumentam que a tradição cristã deve discernir entre elementos históricos condicionados e princípios universais de moralidade e dignidade humana (8,6). ⸻ 1. A Bíblia defende a dominação do homem sobre a mulher? A resposta, segundo os autores, depende de como se interpreta a Bíblia. Existem textos que podem ser usados para sustentar uma visão hierárquica entre os sexos, mas também há passagens que sugerem uma relação de igualdade e dignidade mútua. O livro analisa essas duas perspectivas dentro do desenvolvimento da teologia cristã. 1.1. A visão subordinacionista Essa perspectiva entende que a Bíblia estabelece uma ordem natural em que o homem lidera e a mulher lhe deve submissão. Os principa...